Para compreendermos o texto da vinha de Nabote, necessitamos lembrar a passagem da sociedade tribal para a sociedade monárquica, onde o poder do rei se tornava absoluto. Em 1Samuel 8, 10-18, já se apontava para o poder do rei e tudo o que ele iria exigir. No Estado Tributário a religião desempenhava um papel importante. A Religião estava acima de tudo e o rei tem privilégios como ungido de Deus. Também seus atos eram legitimados através do culto e de seus ministros (sacerdotes e profetas oficiais). O rei controla o templo, os sacerdotes e até Deus. As relações econômicas, sociais e políticas são controladas pela religião.
Os profetas, ligados ao direito dos pobres, se posicionam contra os profetas do rei. Ele é o mensageiro (porta-voz) da Palavra de Deus porque é o intérprete da Palavra e defensor do direito dos pobres (Mq 3,8). Ligado ao movimento camponês ou escola profética, defende um modelo de sociedade construída sobre relações de justiça, fraternidade e solidariedade, onde o trabalho é livre e o trabalhador também. A profecia é vista como o exercício comunitário de resistência e sobrevivência das comunidades camponesas e das minorias de Israel.
No caso da Vinha de Nabote, vemos o confronto entre Elias e Jesabel, esposa do rei Acab (874-853 a.C.), uma estrangeira, filha do rei dos sidônios (1Rs 16,31). Ela trouxe consigo seus costumes, sua religião e sua prática sobre o funcionamento da monarquia, uma vez que seu povo vivia neste regime há muito mais tempo que Israel. Em sua fala com o rei, ela indica esta nova mentalidade, criticando a posição do rei Acab: “Será que não é você que governa Israel” (1Rs21,7).
Na passagem sobre a Vinha de Nabote, estamos diante do conflito entre o direito do rei e o direito dos pobres. Nabote age apoiando-se na tradição: “Javé me livre de entregar a você a herança de meus pais” (1Rs 21,3). Diante deste conflito é que podemos compreender a atitude de Jezabel, que na verdade já se servia das mentiras (as atuais fakes news) e dos falsos testemunhas para fazer com que o rei tomasse a terra dos pobres sem nenhum constrangimento, pois este era o seu direito!
Jezabel apela para os tribunais de justiça que, em Israel, funcionavam nas portas das cidades. Nelas, os Anciãos (em grande parte composto por chefes das famílias clânicas e notáveis do lugar) ocupavam papel de suma importância (cf. Gn 23,10.18; Jó 29,7; Pr 24,7; 31,23). É a estes tribunais que aludem os profetas quando eles exigem respeito pela justiça ‘na porta’, (Am 5.10,12,15; Zc 8.16). No relato da Vinha de Nabote, aparece o testemunho fraudulento e o uso do nome de Deus tendo em vista a fraude praticada por duas testemunhas falsas que irão acusar Nabote de ter amaldiçoado a Deus e ao rei. Mas um dos grandes problemas nas sociedades antigas relacionadas ao direito e a jurisprudência exercida na porta da cidade (tribunal) está no papel e ação da “testemunha”. Os homens livres na porta da cidade devem denunciar os delitos; porém, muitos agiam através de suborno, presentes e honrarias. Estas ações transformavam as testemunhas em grandes agentes da fraude, da mentira, da falsidade e da maldade. Em alguns textos, como por exemplo, no caso da vinha de Nabote (1Rs 21), testemunhas assim são chamadas de “filhos de belial” (Filhos das Trevas).
Esta atitude arquitetada por Jezabel, mas com o assentimento do rei Acab, deixa o profeta Elias furioso, pois ele sabia que a situação do povo não era nada boa. O povo dependia da terra para sobreviver e para ter sua liberdade e dignidade pessoal garantida e, em contrapartida, o poder monárquico estava usando a religião como legitimadora da dominação. A esperteza de Jezabel, aliada ao desejo de posse do rei Acab, significa uma ação contra o 5º. Mandamento: “Não mate” (Êx 20,13). A morte de Nabote foi um crime condenado pelo profeta Elias: “Você matou, e ainda por cima está roubando?” (1Rs 21,19).
Com a iluminação do texto da Vinha de Nabote, podemos compreender que a classe dominante sempre encontra meios para roubar, matar e buscar argumentos na religião, na política ou na economia, para se manter sempre como a detentora de todo poder. A mesma estratégia usada por Jezabel (na verdade uma simbologia para mostrar o poder da ideologia, como encontramos no livro do Apocalípse quando comenta o poder da 1ª. Besta (Ap 13, 1-8 = o Império Romano) e o poder da 2ª. Besta (Ap 13,11-18 = a Idologia a serviço do poder).
Para ilustrar esta realidade, basta olhar o Relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2019, que revelam que os povos indígenas e seus territórios tradicionais estão sendo, explicitamente, usurpados: “A “explosão” de incêndios criminosos que devastaram a Amazônia e o Cerrado em 2019, com ampla repercussão internacional, deve ser inserida nessa perspectiva mais ampla de esbulho dos territórios indígenas. Muitas vezes, as queimadas são parte essencial de um esquema criminoso de grilagem, em que a “limpeza” de extensas áreas de mata é feita para possibilitar a implantação de empreendimentos agropecuários, por exemplo. De modo resumido, assim funciona esta cadeia: os invasores desmatam, vendem as madeiras, tocam fogo na mata, iniciam as pastagens, cercam a área e, finalmente, com a área “limpa”, colocam gado e, posteriormente, plantam soja ou milho”.
Estamos, hoje, diante de “Nabotes coletivos”! Perto de nós, temos o exemplo da Comunidade Mandela, em Campinas, e do Acampamento Marielle Vive, em Valinhos, que sofrem com a especulação imobiliária e ficam privados de seu direito à moradia e seu direito à cidade.
Benedito Ferraro
Assessor da Pastoral Operária de Campinas – SP