A VIDA DO TRABALHADOR EM ECLESIÁSTICO 34,21-22

“Mata seu próximo quem lhe tira seu salário; quem não paga o justo salário derrama seu sangue.“

“O pão dos indigentes é a vida dos pobres, e quem tira a vida dos pobres é assassino. Mata o próximo quem lhe tira seus meios de vida, e derrama sangue quem priva o operário de seu salário”. (Eclesiástico 34, 21-22).

A VIDA DO TRABALHADOR EM ECLESIÁSTICO 34,21-22
Fonte da Imagem: Catequese Hoje

Vivemos um momento privilegiado de possibilidades de revisão e reconstrução das condições de vida dos trabalhadores e trabalhadoras do nosso país. Nos últimos anos, a classe trabalhadora viveu momentos sombrios de total descaso de um governo ultraliberal. Fomos assolados por períodos críticos de trabalho precarizado, desemprego e subemprego, até a absurda tolerância para o trabalho escravo. Foram muitas as violações do direito, da dignidade e da justiça – um verdadeiro grito por vida. O “deus” mercado foi honrado e santificado, não sendo permitido ser pronunciado seu “santo” nome em vão. Todo “poder e glória” a ele foi dado, sua fúria se lança todas as vezes que é contrariado, com graves ameaças contra aqueles que o “blasfemam”. O “deus” mercado não tem coração.

Precisamos romper os mecanismos que legitimam e promovem a morte, pois é nesta sociedade que se “mata o próximo quem lhe tira seus meios de vida, e derrama sangue quem priva o operário de seu salário” (Eclo 34,22), que está a consumir “o pão dos indigentes”, “que tira a vida dos pobres, assassinando-os” (Eclo 34,21).

Desde o século III da Era Cristã, o livro de Eclesiástico é assim chamado, pois vem de ekklesia – comunidade, o que significa que era lido e vivido em comunidade (igreja), objetivando o bem comum, zelando pela vida de todos e todas. Ultimamente é também chamado de “Sirácida”, tirado do nome do autor Jesus Ben Sirac, de Jerusalém, e foi escrito em hebraico, entre 185-180 a.C.

Sua mensagem é dirigida ao povo de sua época em crise de fé e grande desesperança. Diante da força militar, da organização civil e política, das ideias filosóficas, do lucrativo comércio, do empobrecimento de grande parte de trabalhadores, grande privação do direito do pobre: de salário digno e do pão de cada dia, ou seja, à própria sobrevivência. Muitos judeus sentiam-se atraídos pela maneira de viver dos gregos e sua cultura de exclusão e servidão. Para opor uma barreira de resistência é que Ben Sirac escreveu em seu livro. Ele busca mostrar que: É preciso manter a identidade de um povo liberto (Ex. 3,7-8) diante da cultura grega.

A VIDA DO TRABALHADOR EM ECLESIÁSTICO 34,21-22
Fonte da Imagem: Raios Luminosos

Eclesiástico é um livro sapiencial, onde mostra que a verdadeira sabedoria é manter a fé em Javé; esta manifesta-se na vida dos antepassados. Apesar de Ben Sirac ser da nobreza ele bebe da fonte da sabedoria, coletando os provérbios do povo; ele aponta a perversidade da cultura grega que empobrece o povo por um comércio sedento de lucro.

Eclesiástico fala que o pobre/trabalhador não pode ficar à deriva de sua fragilidade. Entre outras medidas isso passa por acesso a trabalho e salário dignos.

O trabalhador é quem, na Bíblia, estabelece a sua remuneração. Cabe ao trabalhador estabelecer o valor do seu trabalho. É o trabalhador que sustenta a sua dignidade, pois, esta não lhe é um favor, mas um valor intrínseco. O trabalho deve proporcionar o ganho necessário para a sustentação da dignidade do trabalhador e da trabalhadora e para o seu desenvolvimento econômico.

O trabalhador tem de participar do lucro. A Bíblia não concebe uma sociedade injusta, onde o trabalhador não desfruta do resultado de seu trabalho. O trabalhador, para além do salário, tem direito a participar do resultado de todo o processo que tornou possível a produção do bem, isto é, de tudo o que tal movimento produziu.

Além do que, na Bíblia, o salário não é moeda de especulação. A Bíblia classifica como sagrada a paga do trabalhador, a tempo e a hora, de modo que ele seja o privilegiado na administração de qualquer negócio.

A Bíblia estimula a busca pelo progresso da comunidade (Eclésia). É o modelo que vemos na primeira igreja em Jerusalém. Que é uma igreja que enfrentou a pobreza, transformando todos em trabalhadores, cujo trabalho era para o bem de todos.

Bem Sirac denuncia com veemência o falso culto, o culto “manchado” pelo sangue da injustiça (Eclo. 34,22). É sabido que todas as grandes religiões da humanidade têm combinado e combinam de vários modos a prática do culto externo, no qual a adoração, o louvor e as súplicas são dirigidos à divindade, com regras de conduta social, que visam o relacionamento justo e fraterno entre as pessoas. Como o culto é normalmente mais fácil, enquanto a ética tem suas exigências constantes que mexem com o nosso comodismo e as nossas vantagens pessoais, a tendência normal é superestimar o culto, e subestimar a ética; ou melhor, tentamos enganar a nós mesmos achando-nos quites com Deus porque lhe “oferecemos sacrifícios”, cumprindo “suas”, tantas vezes nossas, leis rituais, embora pratiquemos a injustiça ou simplesmente nos omitamos ante às necessidades do próximo.

“O pão dos indigentes é a vida dos pobres, e quem tira a vida dos pobres é assassino” (Eclo. 34,21). O pão é um “pro-duto”. É aquilo que, segundo E. Dussel, “avança” (pro) diante da vista como um fenômeno no mundo. É o homem quem o cria; é a continuação da criação divina. De todas as maneiras, o pão é sempre fruto de algo mais digno que o próprio pão: o trabalho é a ação humana digna por excelência que objetiva na natureza a dignidade do homem e da mulher. Sem trabalho o ser humano é subjetividade infecunda: suas mãos estão vazias. Sua vida sem pão é morte, pois é o pão quem gera a vida que o torna livre, que o torna gente. Assim melhor se entende Ben Sirac: “o pão é a vida do pobre”, o pão é sua alegria, seu sustento, sua vida.

Quem defrauda o pão – vida do pobre, é homicida. Mata seu próximo quem lhe tira seu salário; quem não paga o justo salário derrama seu sangue. A lógica da teologia hebraica é coerente. Se o pão consumido é vida, o pão não consumido (ilegitimamente apropriado e roubado) é morte. Este pão roubado é agora o mesmo pão colocado no altar como “pão eucarístico” (E. Dussel). “É sacrificar o filho na presença de seu pai”, roubar os pobres para oferecer sacrifício. Porém, o “Altíssimo não aceita as oferendas dos injustos” (Eclo. 34,23). Esta oferenda, diria São Paulo, é um “pão da morte”.

Romualdo Polonio

Teólogo