A pandemia do coronavirus produziu a maior abstenção nas eleições verificada em pleitos nas últimas décadas. Cerca de 30% do eleitorado não compareceu para votar no primeiro turno das eleições municipais, e o percentual foi igual ou superior nas cidades em que foram realizadas eleições em segundo turno.
Não se trata apenas de um fenômeno sanitário. A pandemia aumentou a abstenção, o número de votos brancos e nulos, não apenas porque as pessoas não quiseram sair de casa para votar em decorrência da prevenção de riscos à saúde. As pessoas não quiseram sair de casa para votar também porque a pandemia reduziu horizontes políticos, limitou o acesso às campanhas, agravou a crise de representatividade das instituições políticas. E a banalização da vida humana e o festival de idiotices veiculadas como orientação oficial do bolsonarismo acabaram por relativizar também as medidas de prevenção e as perspectivas políticas de boa parte do povo.
Esse fim de semana, pesquisas indicaram que a popularidade de Bolsonaro, na casa de 37% de aceitação popular, é a maior desde sua posse como Presidente, à bordo da grande fraude eleitoral de 2018. Fake news se tornaram a matéria-prima do governo, como foram a base da sua vitória eleitoral. E um enorme percentual de mais de 22% da população afirma que não irá se vacinar contra a COVID 19, sucesso da campanha militante de desinformação que os setores negacionistas da ciência desencadearam para amparar as opções políticas de Bolsonaro. O Brasil deve ser um dos últimos países do mundo a vacinar a sua população, numa estratégia genocida do governo de extrema-direita mais ideologizado no mundo em relação às políticas de saúde pública na pandemia.
Não surpreende, pois, que a hegemonia de direita na sociedade brasileira aberta com a desestabilização de Dilma depois das eleições de 2014 e o Golpe de 2016 não tenha sido derrotada nas eleições municipais. É bom lembrar que Bolsonaro evitou a polarização nacional nessas eleições: abandonou seu projeto de criar um partido bolsonarista raiz, não apoiou explicitamente muitas candidaturas no primeiro turno, moderou seu discurso depois da grande crise de governo que provocou com as manifestações anti-STF e anti-Congresso. A esquerda também não foi capaz de nacionalizar o pleito, dar-lhe um caráter plebiscitário. Não foi a campanha do Fora Bolsonaro, em que ficasse clara a proposição de um projeto nacional alternativo.
O fato é que os partidos que apoiam Bolsonaro, com o Centrão à frente, tiveram cerca de 40% dos votos válidos no primeiro turno das eleições municipais. As elites locais se reorganizaram para garantir aos partidos da base de Bolsonaro votos que serão preciosos para que o Centrão aumente o preço da governabilidade: hoje, Bolsonaro precisa mais que nunca do Centrão para impedir o impeachment, se vier a ser aberto algum processo de afastamento, e para garantir uma candidatura presidencial em 2022 – se durar até lá.
Quem pagou a conta, novamente, foram os principais protagonistas do Golpe de 2016 – o MDB de Temer e o PSDB de Aécio foram os grandes derrotados nessas eleições municipais. Perderam juntos mais de 12 milhões de votos em relação ao que obtiveram em 2018. Ainda que a Globonews e Doria queiram apresentar as eleições como a afirmação política de um centro político anti-Bolsonaro e anti-Lula, a análise não resiste aos números saídos das urnas.
A esquerda foi derrotada, ainda que dividida e alguns partidos, como o PT e o PSOL, tenham tido pequeno aumento de cerca de 100 mil votos a mais em relação a 2016. Um crescimento quase vegetativo, mas real. A direita não conseguiu sangrar novamente a linha de frente da oposição de esquerda no país. Houve ainda, por parte do PT, uma recuperação de votos importantes em grandes e médios centros urbanos do país, interrompendo uma tendência de várias eleições em que o eleitorado petista se deslocou para as pequenas cidades brasileiras. O PT foi ao segundo turno em 15 cidades com candidaturas próprias, e apoiou as candidaturas de esquerda e centro-esquerda em outras. Mas PCdoB, PDT e PSB, defensores de uma perspectiva mais ao centro no espectro da oposição de esquerda, tiveram quedas muito significativas em relação a 2016.
Para o campo democrático e popular, as eleições devem ser sinal de aprendizado e alerta popular. Não podemos deixar de perceber que sem uma estratégia definida e, se possível, unitária, e sem força organizativa e mobilizadora de massas, não haverá como derrotar a direita e encerrar o ciclo de exceção aberto em 2016. Vamos para 5 anos desde o afastamento de DIlma, nas piores situações sanitárias do nosso continente e uma das piores do mundo, e as condições para reverter esse quadro defensivo da esquerda são ainda adversas.
O eleitorado, no entanto, continua polarizado. Um terço se mantém fiel a Bolsonaro, sólido apoio em termos de disputa eleitoral para a presidência da República. O lulismo permanece forte, e o petismo continua sendo a principal referência na oposição de esquerda. O eleitorado petista está uniformemente distribuído no país, se manteve em relação a 2016, e é um ativo político fundamental para a retomada de lutas sociais e institucionais em 2021. O chamado “centro”, na verdade a direita neoliberal e golpista clássica, não conseguiu nem em 2018 nem agora criar a tão sonhada terceira via entre os dois “extremos”.
Esse o cenário que desafia a esquerda em 2021. Retomar a campanha Fora Bolsonaro, ampliar a luta pelos direitos políticos de Lula, reinventar sua relação com as camadas mais pobres da população, organizar a classe trabalhadora, amplificar o caráter socialista, feminista e antirracista de seu projeto político, encontrar as formas de mobilização social para ganharmos corações e mentes de setores que ainda não entraram em campo na luta em defesa dos direitos do povo, da soberania nacional e da democracia.
Renato Simões
Militante dos Direitos Humanos e Dirigente Nacional do Partido dos Trabalhadores