Caminhar com a Mãe Terra, as Águas e o Coração

A maioria das religiões mantém o costume de fazer peregrinações; os muçulmanos a Meca, os hinduístas ao rio Ganges, os cristãos a Jerusalém, a Roma, Santiago de Compostela ou Lourdes.

No Brasil, de norte a sul, o povo católico expressa a sua devoção fazendo romarias a santuários como São Francisco de Canindé, no Ceará, o túmulo do Padre Cícero em Juazeiro do Norte, o Bom Jesus da Lapa nas margens do São Francisco, Pirapora em Minas Gerais, o Divino Pai Eterno em Trindade, GO, Aparecida em São Paulo e assim por diante.

Caminhar com a Mãe Terra, as Águas e o Coração
Fonte da Imagem: Diário do Nordeste

O amor às romarias vem da tradição cristã, mas também das culturas indígenas. Há séculos, o povo Guarani busca a Terra sem Males, os Yanomami peregrinam pela floresta em busca dos Xapiri. Outros povos peregrinam em torno de uma serra sagrada ou das nascentes de um rio.

De fato, as peregrinações vêm de tempos antigos, mas mesmo em nossos dias, existe em todo o mundo e revelam que a fé e a espiritualidade não podem ser restritas ao mundo privado. Em tempos nos quais até Igrejas e religiões são tentadas a cair no individualismo desamoroso, a prática da romaria se torna ainda necessária como símbolo de resistência e profecia que as comunidades nos dão de outro modo de crer, de viver e conviver.

As romarias expressam uma espiritualidade, na qual se reza com os pés e com todo o corpo e não somente com a cabeça e o coração. Lembra que, como ensinava o Concílio Vaticano II, Deus não quis nos salvar de forma isolada, mas nos reunindo como povo e povo em caminhada.

Tradicionalmente, as romarias se fazem a santuários que se tornaram lugares sagrados. Além de renovar as peregrinações a santuários como Bom Jesus da Lapa e de fazer romarias de trabalhadores/as à Aparecida, a mística da caminhada libertadora começou a promover romarias a lugares de forte significado para as comunidades eclesiais de base e para pastorais sociais.

Em 1978, nas ruínas de São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul, animados por bispos como Dom Pedro Casaldáliga e Dom Tomás Balduíno, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a Pastoral da Terra, (CPT) se reuniram para celebrar o segundo centenário do martírio do cacique São Sepé Tiaraju e dos índios Guarani, massacrados pelos exércitos de Portugal e Espanha. Essa romaria valorizou a peregrinação permanente do povo Guarani pela Terra sem Males, retomou a piedade popular do Catolicismo Popular no Sul pelo arcanjo São Miguel, símbolo da força divina presente em nossas lutas e, ao mesmo tempo, consolidou a espiritualidade da justiça e libertação. Desde então, em muitas regiões do Brasil se fazem anualmente romarias da Terra e das Águas. Nessas, mais do que uma imagem sagrada de algum santo milagroso, o sacramento da romaria é a comunhão com a Terra e o cuidado com as águas hoje tão ameaçadas pela ganância do Capital. Em alguns casos, a caminhada se faz ao local no qual algum/a mártir deu a vida pelo projeto divino da justiça e da libertação. Em outros casos, se trata de uma terra de lutas e de conquistas dos lavradores ou de ocupação urbana.

Conforme os relatos bíblicos, nos tempos da conquista da terra, o povo hebreu costumava celebrar a sua luta cantando salmos como: “Levante-se Deus e os seus inimigos se dispersem. Diante de sua face, fujam os que o odeiam” (Sl 68, 1). E o povo mantinha o costume de irem a santuários como Betel, Silo ou ao templo de Jerusalém, assim como considerava sagrado o carvalho de Mambré.

Segundo contam os evangelhos, na época do profeta João Batista, multidões iam em romaria ao deserto ou ao Jordão para serem mergulhadas nas águas sagradas, fronteira para a terra prometida.

Atualmente, como diz o livro do Apocalipse, o Cristo ressuscitado nos chama a retomarmos o primeiro amor (Ap 2, 5), que para o povo bíblico foi a espiritualidade do Êxodo e a caminhada para a terra prometida e as águas do Espírito.

Caminhar com a Mãe Terra, as Águas e o Coração
Fonte da Imagem: F5 News

Já em 1965, Dom Hélder Câmara, então arcebispo de Recife, escreveu: “Quando me perguntam pelas viagens que faço a países distantes deixando a entender que peregrinações assim não estão ao alcance de qualquer pessoa, eu gostaria de ter o dom maravilhoso de convencer que viagem alguma se compara, nem de leve, a caminhar, noite e dia, como todos podemos fazer, dentro de Ti, Senhor. Pena que, neste mundo, o mais comum seja viajar de olhos vendados”.

Essa meditação poética é um convite para assumirmos nossa peregrinação interior de cada dia, caminhada que é íntima e, ao mesmo tempo, comunitária: avançar de olhos e corações abertos no caminho do amor.

Marcelo Barros