Carta a Miquéias sobre as coisas do Brasil de hoje

Caro Miquéias,

Dirijo esta carta a sua minúscula aldeia, no interior do antigo reino de Judá torcendo para que o Rei Ezequias, não a impeça de chegar nas suas mãos. Sabemos que iniciou sua atividade profética após o ano de 740 a. C num cenário político desafiador que marcava o fim de um período próspero. De origem camponesa você denunciou a opressão e a injustiça que se abatiam sobre seu povo, mostrando como a riqueza de uns poucos se fundamentava na miséria de muitos. Como ninguém, você mostrou que os que oprimiam o povo usavam o nome de Deus para provar que eram justos.

Carta a Miquéias sobre as coisas do Brasil de hoje

Miqueias é um personagem bíblico, profeta do século VIII a.C., morador de Morasti, na Sefelá em Judá, talvez tenha sido um líder (ancião, heb. zaqen) da comunidade.

Aqui no Brasil, Miquéias, enfrentamos um momento igualmente difícil. Após o golpe parlamentar de 2016 a situação dos trabalhadores/as só tem piorado. Além da aprovação de reformas brutais que mexeram na aposentadoria e na legislação trabalhista, enfrentamos agora, com a Pandemia do Covid-19, o aumento do desemprego. Segundo os dados oficiais já são 12,8 milhões de desempregados/as e desalentados/as. Milhares deles/as vagando perdidos pelas ruas de nossas cidades.

Sob o governo Bolsonaro assistimos à naturalização das mortes provocadas pela pandemia, o incentivo à destruição da biodiversidade da Amazônia e do Pantanal, assim como o descaso para com a vida e o destino dos povos indígenas. Não é exagero constatar que desde 2019 estamos diante da imposição pelas elites econômicas de nosso país de um programa econômico violento e ultraliberal caracterizado pela redução dos direitos dos trabalhadores/as, redução de salários e dos gastos sociais do governo, somado a um programa de desnacionalização do país cujos exemplos mais emblemáticos são a venda do petróleo do Pré-Sal e a iminente privatização dos Correios e da Eletrobrás. Como se não bastasse, com a tutela dos militares que ocupam postos chaves no governo, vivenciamos um Estado Policialesco, à beira da exceção e da perseguição política. Além de atropelar a soberania popular, a Constituição de 1988 e os valores democráticos, o bolsonarismo permite ao grande capital retomar as rédeas do país e impor um programa antipopular que dificilmente seria aprovado as urnas. Tudo feito em nome de Deus e da Pátria!

Como no seu tempo, querido Miquéias, a Bíblia e o nome de Deus estão sendo utilizados para justificar o desmonte do país e o saque aos direitos dos trabalhadores/as e das minorias. Soma-se a isso a mentira, a difamação e a negação da ciência utilizadas como armas contra aqueles que ousam resistir e lutar. Contudo, teu exemplo nos leva a não perder o ânimo e a esperança. Retomar o trabalho de base nas periferias geográficas e existenciais deste país, reconhecer erros cometidos, apostar em novas formas de organização e resistência coletivas e não em lideres iluminados, parecem ser o caminho para enfrentarmos o presente e semearmos um novo tempo.

Sem mais, despeço-me prometendo conservar a fidelidade para com Javé e resistir à idolatria do dinheiro e sua cultura do descarte, seguindo o teu exemplo e o do nosso querido irmão Pedro Casaldáliga que neste momento, imagino, esteja junto de ti declamando poesias e falando da sua paixão pelos indígenas, pelos humilhados e ofendidos da terra.

Arnaldo Silva

Pastoral Operária Campinas – SP