Carta aos Efésios
Vestir-se de uma Nova Humanidade

A escolha, por parte da Conferência Episcopal da CNBB, do livro do mês da Bíblia não é feita de modo aleatória, mas dentro de um plano pastoral quadrienal, portanto, nós, neste ano de 2023, esta-mos encerrando um ano quadrienal. Desta forma, começa uma nova eleição, novos estudos para um novo quadriênio, a partir de 2024.

A Carta aos Efésios, que é o tema do mês da Bíblia deste ano, 2023, se insere, foi escolhida dentro de um plano pastoral definido lá pelo final de 2018 e aprovado ao longo de 2019. A escolha está inserida dentro de um determinado momento histórico vigente no país. Então, o que moveu, o que gerou a escolha dos livros do quadriênio que se encerra foi uma crise econômica social, que vinha se arrastando: temos aí o Governo Dilma, com uma crise política, veio o impeachment, veio após, o Governo Temer, que foi, senão o maior, foi uma das maiores rejeições populares, e a eleição do Go-verno Bolsonaro no final de 2018.

2020 – Livro do Deuteronômio – Constituição básica do Povo de Deus – desde a reforma do Rei Josias até a destruição do Templo, no ano 70 a.C. – Todo processo de legislação que Jesus viveu foi gerado dentro do Deuteronômio. Foi uma norma de vida para o povo durante +/- uns 600 anos. Por-tanto, em 2020 foi feita essa escolha de DT no intuito de preservar, de defender as comunidades, a perceber a importância da constituição – não somente da nossa constituição, mas da constituição do povo de Deus, sob seu programa divino, de vida PARA TODOS.

Infelizmente, 2020 foi o ano da pandemia, ou seja, não houve quase que repercussão nenhuma do estudo de DT. O que surgiu ou quem ganhou mais força foram as lives.

2021 – Carta aos Gálatas – já dentro de uma perspectiva de uma Igreja sinodal, nos insere nesse mis-tério que é a Igreja – congregação de todas as pessoas batizadas, mas, uma Igreja que não se traduza dentro dela, as diferenças que existem fora – o grande foco da carta aos gálatas é o batismo – o ba-tismo é a igualdade de todos diante de Deus, que não faz acepção de pessoas. Isso é retomado na continuidade à essa reflexão do batismo, quando neste ano de 2023 estudamos a carta aos efésios, cujo tema central é a Igreja. Um voltar o olhar para COMO SER IGREJA A PARTIR DE UM BA-TISMO QUE DEVERIA NOS UNIR.

2022 – Como esse ano era ano de eleição presidencial, o tema do mês da Bíblia 2022 foi Josué. Josué é um protótipo de liderança íntegra e verdadeira. Vamos lembrar de 4 anos (2019-2022) onde nunca se ouviu tanto a palavra fake news (MENTIRA) circulando em nosso meio. Pseudos (falsos) defen-sores de Deus propagando mentiras, ódio e tantas desgraças mais. Josué é a única liderança bíblica do A.T. que não se diz nada contra sua conduta. À luz de Josué, procurou se resgatar entre as comu-nidades o verdadeiro papel de um legítimo líder para esse pobre país. A questão de um governo bra-dar a religião para governar em desfavor do povo pobre é muito comum entre os opressores de Isra-el, você procura se apropriar da religião para legitimar qualquer ação sua, num tom de vontade divi-na. Jesus sentiu isso na pele, uma religião cooptada, doutrinada pelo poder romano, que culminou em ASSASSINATO. Líderes que pregam resistência são mortos nesse tipo de governo.

Capa do livro: Mês da Bíblia 2023 - "Vestir-se da nova humanidade!" (Ef 4,24)
Fonte da Imagem: Paulinas

Entrando diretamente no tema do livro da Carta aos Efésios, ela quase que é uma complementação ao estudo da Carta aos Gálatas, estudado em 2021. Tínhamos falado que a Carta aos Gálatas mostra, não somente o interesse de Paulo em criar uma integração entre grupos distintos dentro de uma mesma comunidade (cristãos vindos do judaísmo com os cristãos vindos do paganismo). Como criar uma única comunidade onde todos possam superar seus preconceitos, não trazer para dentro da comunidade as diferenças existentes na sociedade? A comunidade cristã não pode ser uma réplica/repetição de todos os conflitos que existem na sociedade. Por isso, Paulo é muito radical na sua abordagem batismal, dizendo que a comunidade não pode trazer para dentro dela as diferenças de gênero (diante de Deus não existe mais diferença entre homem e mulher), as diferenças sociais (diante de Deus não existe mais escravo e livre), as diferenças étnicas e culturais na comunidade cristã (diante de Deus não existe diferença de raça, de cultura, não existe mais judeu, grego).

Criar uma comunidade onde possa, de fato, vivenciar a igualdade de todos diante de Deus. DEUS NÃO NOS CRIA IGUAIS, NÓS SOMOS TODOS DIFERENTES, MAS DEUS NÃO FAZ ACEPÇÃO DE PESSOAS.

Então, a complementação ao estudo da carta aos Gl. de 2021 é o estudo da carta aos Efésios, neste ano de 2023. O Lema escolhido pela Conferência Episcopal é VESTIR-SE DE UMA NOVA HU-MANIDADE. O que gera essa nova humanidade? O BATISMO. No batismo a pessoa é convidada a despir-se daquilo que era (Paulo chama de homem velho) para revestir-se de Cristo (homem novo – nova humanidade) – Nova comunidade, novo Povo de Deus, é a Igreja.

A Carta aos Efésios traz muitas dificuldades, talvez a mais difícil tradução do NT. Porque, literari-amente, ela não é uma carta, tem todo aspecto de uma homilia. Provavelmente, a comunidade de Éfeso convidou alguém, e esse alguém é muito próximo do pensamento paulino (de Paulo). Existe hoje um grande consenso que a carta aos Efésios não é uma carta e não foi redigida por Paulo por-que o vocabulário é bem diferente, a lógica interna é bem diferente. É aquilo que, quando a gente faz estudo bíblico a gente entende como escrito de uma segunda geração. Por isso a Carta aos Efé-sios se assemelha em muitos aspectos a escritos contemporâneos.

A pessoa que está por trás da Carta aos Efésios é uma pessoa muito próxima no pensamento paulino, é uma pessoa que traz o pensamento de Paulo, que é um pensamento da primeira geração, adaptando à uma realidade nova, que é a segunda geração de cristãos.

A Carta aos Efésios está, automaticamente, ligada à Igreja de Éfeso. Fazendo memória de Atos dos Apóstolos, há um deslocamento da liderança da Igreja. Primeiro, a Igreja, ela é centrada na Igreja mãe em Jerusalém, e é centrada na figura de Tiago (Concílio de Jerusalém – AT 15,13), e essa Igreja tem a grande contribuição até o Concílio de Jerusalém, cap. 15 de AT. Depois a gente percebe um deslocamento da Igreja para Antióquia, e lá estão Pedro, Paulo e Barnabé, e é a partir de Antióquia que vai se desenvolver a equipe missionária coordenada, primeiro por Barnabé, e, posteriormente, coordenada por Paulo, que vai fazer a expansão do modelo de Igreja em Antióquia. Depois percebe-se um deslocamento da Igreja para a cidade de Éfeso – durante muito tempo a cidade de Éfeso foi uma das mais importantes Igrejas na antiga cristandade. E, por fim, o deslocamento da Igreja vai para Roma, onde foi a capital do Império, onde foi catequisada por Pedro e por Paulo e de lá eles sofreram o martírio, e daí a Igreja de Roma passa a ser a Igreja referencial.

Capa do livro: Carta aos Efésios – Sabedoria e Esperança da Comunidade
Fonte da Imagem: CEBI

A Igreja de Éfeso vai ficar como referência da parte oriental do império até +/- 600 d.C. onde foi totalmente arrasada por um terremoto. Basta lembrar que, geograficamente, Éfeso está situada onde hoje encontra-se o território da Turquia. Basta lembrarmos que em fevereiro deste ano de 2023, um terremoto matou quase 50 mil pessoas. Éfeso então ficou totalmente destruída, e o deslocamento então vai sair de Éfeso e vai para Constantinopla, que vai ser a nova liderança e vai, inclusive, rivali-zar com Roma.

Segundo AT quem fundou a Igreja em Éfeso foi um casal Áquila e Priscila (Missionários judeus itinerantes: de Roma para Corinto, daí para Éfeso e novamente para Roma). Paulo fica um ano e meio na casa deles em Corinto (cap. 17 e 18 AT), ele então tem que voltar para Antióquia, para fazer o relatório e ele percebe a estratégia da cidade de Éfeso e pede, então, para que o casal Áquila e Priscila fechem a casa deles em Corinto, se transfiram para Éfeso, e aí, como era naquela época, o casal abre sua casa e, automaticamente, abrem uma Igreja. As igrejas dependiam de casais que trans-formavam suas casas em espaços celebrativos comunitários. Três anos depois, quando Paulo vai à Éfeso, já existia lá uma Igreja, e Paulo vai fazer uma longa estadia em Éfeso, inclusive, grande parte das cartas que ele escreve foram escritas a partir de Éfeso, principalmente a grande correspondência que Paulo vai manter com a comunidade de Corinto.

A Carta aos Efésios tem um viés mais voltado para a liturgia (em tom de homilia) – uma verdadeira celebração litúrgica – primeira parte: 1,3 até 3,21, parte mais reflexiva, mas ao mesmo tempo, uma elaboração teológica.

Segunda parte: 4,1 até 6,9 – são as partes mais práticas para uma comunidade, mas uma comunidade que a gente percebe que não está trazendo a prática familiar própria da cultura judaica, são gentios convertidos que estão enfrentando muitas dificuldades em viver o Evangelho de Cristo devido a questões culturais intensas, principalmente na convivência doméstica.

Desta forma, a Carta aos Efésios vai elaborar quase que um código familiar tentando quebrar a estrutura patriarcal rígida das famílias greco-romanas onde o pather-familie tinha poder de vida e de mor-te sobre todas as pessoas dentro de casa. Essa foi uma das mais violentas lutas que o cristianismo nascente teve que desempenhar para tentar quebrar o poder patriarcal.

5 chaves de leitura para o estudo da Carta aos Efésios:

  1. Entender o escrito – originariamente, um grego muito difícil, não tem estrutura literária de carta, não temos mais a pessoa física de Paulo, mas um desenvolvimento da teologia de Paulo, a partir de cartas anteriores, principalmente a Carta aos Gálatas e a retomada da Carta aos Colossenses. A Carta aos Efésios sugere uma pessoa muito bem-preparada, a fala que gerou essa homilia é muito bem-preparada, um sermão solene (estamos nos anos 80 d.C.).
  2. Igreja – a Carta aos Efésios é o mais antigo tratado teológico sobre a Igreja, é a base de toda ecle-siologia cristã – a reflexão sobre o mistério do Cristo continuado pelo mistério da Igreja – são com-plementações de um único mistério. A comunidade dos fiéis (Igreja) continua sua travessia histórica, animada pelo Espírito Santo – Imagens comparativas para definir o que é a Igreja – 1,23 e 4,6 = a Igreja é o corpo visível de Cristo / 2,19-22 = Igreja é um edifício espiritual formado por pedras vi-vas, que são os batizados e batizadas, e esse edifício tem como base/alicerce o ressuscitado (cap. 5). A Igreja é a esposa de Cristo, um matrimônio entre Cristo e a Igreja.
  3. Família – por mais que se pense na grande família, a Igreja se concretiza naquilo que Jesus disse: “onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles”. A Igreja é a presença de Deus no meio da humanidade, e essa Igreja se concretiza onde dois ou mais estiverem reunidos.
  4. O que faz com que a Carta aos Efésios não seja mais considerada de Paulo – a Carta aos Efésios começa a traçar uma relação entre o Jesus de Nazaré e o Cristo cósmico – nós do ocidente não temos muita essa devoção, mas somente nas igrejas do oriente – russas e gregas. A Carta aos Efésios vai dizer que Cristo tem uma missão de salvação, não apenas das pessoas, da humanidade, mas, através de Cristo, Deus nos faz uma proposta de uma salvação cósmica. Hoje pensamos uma salvação da humanidade e da natureza, uma teologia ecológica (criação).
  5. Experiência pessoal do apóstolo Paulo – A Carta aos Efésios faz parte de um corpo: são 14 cartas, 6 temos certeza de que não saíram da “pena” de Paulo, não são frutos do trabalho (Hb, 1 e 2Tm, Ef, Cl e Tito) são cartas dessa segunda geração – o fio que costura todas essas cartas é a experiência de Saulo que se transformou em Paulo e que pregou aos gentios. Papa Francisco não é apenas o suces-sor de Pedro, ele é sucessor de Pedro e Paulo – são figuras complementares. A Carta aos Efésios tenta fazer essa comunhão entre cristãos vindo do judaísmo com cristãos vindos do paganismo (em Gálatas vimos muito essa tensão). Ou se cria uma comunhão de mesa ou isso não é Igreja, Igreja da qual nós somos herdeiros. A experiência de Paulo em Efésios é essa: de 2 Paulos se fez um só.

Um dos objetivos desta Carta era fortalecer a caminhada das pequenas comunidades cristãs daquela época: “Não fiquem abatidos com as tribulações que enfrento por causa de vocês”.

A carta exorta os fiéis à prática do Evangelho de Jesus Cristo crucificado (Ef 3,1-21), na luta por uma sociedade solidária e fraterna contra o mal: “Revistam-se do homem novo, criado segundo Deus, na justiça e santidade da verdade” (Ef 4,24).

As posturas éticas expressam não somente a fé, mas também a maturidade humana das pessoas que assumem viver o amor em comunidade. Na Carta aos Efésios são mencionadas a humildade, a man-sidão e a paciência (Ef. 4,1-2). Estas são atitudes muito importantes para a convivência e a articula-ção de uma igreja sinodal. Tanto as pessoas que coordenam as comunidades, como aquelas quem participam das equipes de serviço e das celebrações precisam viver neste processo: buscar a humil-dade, a mansidão e a paciência. A expressão da fé através de um processo de crescimento e maturi-dade humana é fundamental também para o clero.

Romualdo Polonio

Teólogo