Culpa da Vítima

Durante a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra em meados do século XVIII, ocorreu um aumento enorme do número de doenças e acidentes relacionados ao trabalho. Isso aconteceu por causa do uso cada vez maior de máquinas, do aumento de trabalhadores em locais fechados, das longas jornadas de trabalho, da utilização de crianças e de mulheres nas atividades industriais, das péssimas condições de saúde nos ambientes de fábricas, entre outras razões. Embora o trabalho assalariado existisse desde o mundo antigo, sua transformação em principal forma de entrada no processo produtivo somente ocorreu com a industrialização. O aumento de agravos à saúde dos trabalhadores obviamente era consequência desta industrialização indiscriminada e não como se tentava fazer na época, e que alcança até os dias atuais, de acusar os próprios trabalhadores de serem culpados pelo aumento de doenças e acidentes, sendo que eles mesmos é que são as vítimas.

O entendimento por parte de um grande número de assalariados com a percepção coletiva de que o trabalho desenvolvido nas fábricas era fonte de exploração econômica e social, causando danos à saúde e provocando adoecimento e morte, desenvolveu uma inevitável e crescente mobilização social para que o Governo interviesse nas relações entre patrões e empregados, visando à redução dos riscos no trabalho. Foram feitas então as primeiras normas do trabalho na Inglaterra (Lei de Saúde e Moral dos Aprendizes, de 1802), que depois foram seguidas por outras normas semelhantes nas demais nações em processo de industrialização.

Revolução Industrial
Fonte da Imagem: Portal do Vestibulando

A criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1919, mudou de forma bastante rápida o ritmo e o enfoque das normas e práticas de proteção à saúde dos trabalhadores, sendo atualmente a grande referência internacional sobre o assunto, através da elaboração de convenções e recomendações para diversas atividades de trabalho que acabaram se transformando em leis trabalhistas nos países  que as aprovaram.

No Brasil, o mesmo fenômeno ocorreu, embora de forma mais demorada em relação aos países mais industrializados. Durante o período colonial e imperial (1500-1889), a maior parte do trabalho braçal era realizada por escravos (índios e negros) e homens livres pobres. A preocupação com as condições de segurança e saúde no trabalho era pequena e essencialmente praticada por alguns setores privados.

O desenvolvimento de uma legislação de proteção aos trabalhadores surgiu com o processo de industrialização, durante a República Velha (1889-1930). Inicialmente esparsa, a legislação trabalhista foi ampliada no Governo Vargas (1930-1945) com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), instituída pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943. Dentro da linha autoritária, com tendências fascistas, que então detinha o poder, essa legislação buscou manter as demandas sociais e trabalhistas sob o controle do Governo, inclusive com a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, em 26 de novembro de 1930. Boa parte dessa legislação original foi modificada posteriormente, inclusive pela Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), de 10 de outubro de 1988.

Em 1966, por meio da Lei no 5.161, foi criada a Fundação Centro Nacional de Segurança, Higiene e Medicina do Trabalho (Funda Centro), hoje Fundação Jorge Duprat Figueiredo, de Segurança e Medicina do Trabalho (funda centro), para realizar estudos e pesquisas em segurança, higiene, meio ambiente e medicina do trabalho, inclusive para capacitação técnica de empregados e empregadores.

Culpa da Vítima
Fonte da Imagem: Sintrajufe RS

Em 8 de Julho de 1978, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), com o objetivo de padronizar, fiscalizar e fornecer orientações sobre procedimentos obrigatórios relacionados à segurança e à medicina do trabalho, aprovou 28 Normas Regulamentadoras (hoje 36). Na época, o Brasil era considerado o “campeão mundial” em acidentes do trabalho e a criação das Normas Regulamentadoras (NRs) foram importantes para tentar reverter essa situação inaceitável. Apesar da criação das normas regulamentadoras terem sido um fator fundamental para a redução de doenças e acidentes, a primeira norma regulamentadora (NR-1), cujo título era “Disposições Gerais” e que entre outros itens, estabelecia deveres e direitos para empregadores e empregados. Por exemplo, incluía no texto que os empregadores deveriam fornecer os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) gratuitamente para os seus empregados e que os empregados eram obrigados a utilizar sob pena de serem penalizados caso não os utilizassem.

Um dos itens constantes na versão original da NR-1 mencionava o “Ato Inseguro” como sendo causa de acidentes. Segundo a versão original, os acidentes ocorriam devido a duas causas principais: O ato Inseguro e as Condições Inseguras. Os atos inseguros ocorriam devido à um “fator pessoal” que sugeria que o trabalhador seria culpado pelo próprio infortúnio. Em 2009, após muitas críticas, debates, protestos e lutas de trabalhadores, O Ministério do Trabalho retirou da NR-1 o “Ato Inseguro”, no entanto, os instrumentos utilizados pelas empresas mantém o paradigma jurídico de culpabilização da vítima, ancorados oficialmente na norma NBR 14280/2001 que é uma norma da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) que se propõe a padronizar o “Cadastro de acidentes do trabalho” que também estabelece uma categorização e modelo de apuração das causas do acidente como sendo provocados por três fatores: Fator pessoal de insegurança (causa relativa ao comportamento humano, que pode levar a ocorrência do acidente ou à prática do ato inseguro); Ato Inseguro (ação ou omissão que, contrariando preceito de segurança, pode causar ou favorecer a ocorrência de acidente) e Condição Ambiente de Insegurança (Condição do meio que causou o acidente ou contribuiu para sua ocorrência). Cada fator é definido e detalhado no sentido de reduzir um fenômeno complexo e que possui muitas causas a aspectos triviais, que via de regra, acaba atribuindo como causa a culpa do próprio trabalhador, pelo seu infortúnio.

Como vemos ao retirar-se o “Ato inseguro” da legislação trabalhista, muda-se para que tudo permaneça como está, pois a Norma da ABNT continua tendo apoio governamental direto e indireto e funciona como instrumento de produção de laudos e/ou peças periciais, além da reprodução de conhecimento, formação e capacitação de técnicos e trabalhadores em cursos de graduação e especialização.

Você é o responsável pela sua segurança !!
Fonte da Imagem: Análise de Acidentes Universidade Estácio de Sá

Muito mais do que denunciar, é necessário e urgente que todos os que atuam na Segurança e Saúde no Trabalho se unam em  um forte movimento para a desconstrução e substituição da abordagem comportamentalista que deve ser iniciado com a revisão radical da NBR 14280/2001 uma vez que ela representa a peça principal de sustentação de noções e práticas ainda predominantes nas empresas apesar de ultrapassadas pela evolução dos conhecimentos técnicos e científicos.

Além disso, é importante também que todos nós que atuamos em movimentos populares, lutarmos para desmistificar esta mentira da “culpa da vítima”, muito presente na mídia e no senso comum e colocarmos a culpa nos verdadeiros culpados que são os patrões, afinal de contas, se pela lei os empregadores são os responsáveis pela segurança e saúde dos trabalhadores, obviamente que eles também são responsáveis caso ocorra alguma doença ou acidente com seus empregados.

Gilmar Ortiz de Souza | Mestre em Saúde Trabalho e Ambiente (Fundacentro) e Engenheiro de Segurança do Trabalho (FAAP)

Militante da Pastoral Operária da Diocese de Santo André/SP