DÉBORA E JAEL

Mulheres que lutam e fazem a história acontecer para o bem do povo

O mundo vivido por homens e mulheres dos tempos bíblicos compreende culturas que existiram há pelo menos três milênios. Se por um lado a Bíblia, livro escrito por homens, silencia e deixa a maioria das mulheres no anonimato (a Bíblia revela também como era a vida de então), por outro, a Palavra de Deus que a percorre, fez com que fosse revelada a importância e até a centralidade das mulheres em muitos de seus capítulos. Daí, nosso desafio em resgatar as guerreiras, lutadoras, protagonistas e heroínas nos textos bíblicos. Para começar, convido a que leiam os capítulos 4 e 5 do livro dos Juízes.

DÉBORA E JAEL
Fonte da Imagem: JW.org

Nestes dois capítulos, o livro dos Juízes apresenta duas mulheres muito interessantes. Jz 4 narra a história da batalha de Débora e Barac contra Jabim, rei de uma das cidades estado na terra de Canaã que oprimia os clãs e aldeias das tribos de Israel. Na sequência, Jz 5, um dos mais antigos textos bíblicos, nos apresenta o Cântico de Débora e Barac, que celebra a vitória das tribos reunidas sobre o opressor e seu exército.

Estamos nos primórdios da formação do povo de Israel, também conhecido como o tempo dos juízes. Israel ainda não era uma nação. A terra de Canaã (nome mais antigo daquele território) estava povoada por algumas cidades estado (cada cidade estado tinha seu rei, exército…) que se mantinham com a exploração do trabalho forçado, dos injustos tributos e opressão militar às aldeias camponesas, que eram a maioria da população. Israel ia se formando pela organização das tribos. O contexto do cântico (Jz 5) sugere que as tribos estavam divididas, dispersas, as aldeias à mingua e enfraquecidas pela ideologia e opressão do rei Jabim. Jz 4,3 deixa claro que os israelitas foram oprimidos por 20 anos.

Caso único na Bíblia, Débora recebe três títulos nesses dois capítulos de Juízes: juíza, profetisa e mãe em Israel. Uma verdadeira líder que foi lembrada como a mulher que administrava a justiça e lutava pela defesa e união do povo. Ela chama Barac para a luta. Ele, líder de uma das tribos, responde que só vai se ela for (4,8). Débora diz que vai com ele pra luta, mas adverte que será pelas mãos de uma mulher que Javé entregará Sísara, chefe do exército de Jabim (4,9). Essa mulher será Jael, uma quenita, tribo dedicada à metalurgia que não fazia parte de Israel e que, provavelmente, servia o exército de Jabim. O certo é que, se não fosse o papel heroico que Débora teve nessa história, se não fosse o risco que Jael correu ao ser solidária com as demais tribos, eles não teriam sido libertados. Talvez, não tivessem chegado a ser um povo!

“Renunciava-se nos campos, renunciava-se em Israel, até que te levantaste, ó Débora, até que te levantaste, mãe em Israel!” Jz 5,7

O exército de Jabim foi derrotado pelo povo tribal organizado em uma guerra, sob a liderança de Débora, quando o exército do rei era bem mais forte militarmente. Jael, atrai à sua tenda Sísara, o chefe do exército de Jabim em fuga; o acolhe, o faz dormir e o mata, cravando-lhe a estaca da tenda em sua têmpora (4,21; 5,25-27). Assim como em outros textos bíblicos, o uso da sexualidade por parte de uma mulher aparece como meio de libertação diante de uma dominação absoluta. A linguagem do capítulo 5 e a cena narrada no capítulo 4 fazem alusão a essa experiência da sexualidade como arma de defesa e troféu da vitória dos oprimidos contra os opressores.

Sem fazer apologia aos métodos usados que só podem ser compreendidos diante do contexto vivido, podemos afirmar que Débora e Jael estão unidas nessa história na defesa e formação de um povo. Elas não têm uma etnia comum, nem religião (o texto não diz que Jael aceitava o Deus dos israelitas…), nem mesmo afinidade cultural. Mas estão unidas no mesmo contexto do êxodo, da resistência a um sistema opressor que suga a vida de seus povos. Ambas são lembradas na Bíblia, porque o Deus do êxodo não aceita escravidão nem opressão. Assim também são lembradas na Bíblia as parteiras dos hebreus e Miriam, a libertadora irmã de Moisés, que agiu com outras mulheres de forma inteligente e determinada na defesa do povo (Ex 1,15-22; 2,1-10) ; assim também Rute, que se aliou a Noemi para dar continuidade a um povo que passou a ser seu povo (Rt 1,16); assim também as mulheres que seguiram a Jesus e testemunharam a sua ressurreição, tornando-se apóstolas; assim como o evangelista Mateus reúne no início de seu evangelho a Tamar, Raab, Rute, a mulher de Urias e Maria, a mãe de Jesus (Mt 1). Todas são mães de Israel, todas geraram a vida do povo, algumas por seus filhos, outras por sua luta. Mas nenhuma delas se compreende sozinha.

E nós, mulheres de hoje que lutamos por seguir vivas em um mundo que nos trata como coisa, que lutamos por direitos de todas e todos, por justiça e por libertação de toda opressão e colonização de nossos corpos, vamos com elas na fé e na luta ou não vamos a lugar nenhum.

Silvana Suaiden

Pastoral Operária Campinas – SP