Atravessamos este ano de dois mil e vinte, sob o impacto da pandemia do coronavírus, que provocou o distanciamento físico, o isolamento social e a segmentação cultural. A emergência sanitária escancarou a desigualdade social, dilatando a distância entre centro e periferia, a precariedade das soluções governamentais, o frágil tecido social e a falácia das promessas neoliberais. Nesta quadra do tempo, saltaram os índices de violência e intolerância, escancarou-se o racismo, o machismo, a homofobia, o preconceito…
O isolamento tornou-se distanciamento; a distância favoreceu o surgimento de muros e cercas invisíveis, identificados com as atitudes individualistas e imediatistas. Para a maioria, se impôs a luta pela sobrevivência, a disputa pela ajuda emergencial do governo, os desafios e promessas do fundamentalismo que garante o paraíso como resposta o investimento do dízimo… Quase todos passamos a confiar na maravilha da internet e na excelência de seus aplicativos! Porém, resta-nos uma sensação de que estamos com as mãos atadas, pois as faces mascaradas e a vida semiparalisada, deixam-nos, na maioria das vezes, sem perspectivas. Estamos como árvores secas, prontas para a queimada… Contudo, ainda se ouve, aqui e ali, a ousada palavra de Jesus para cada um de nós (os atados, distantes e secos): “Estenda a mão”!
Estenda a mão: convite ancestral e carregado de novidade! Assim contam os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas: ao visitar uma sinagoga (lugar de oração, em um sábado), Jesus encontra uma pessoa com uma das mãos paralisada, e é provocado pelos que estão ali presentes sobre qual seria a vontade divina. Sua resposta é chamar a pessoa ao centro e pedir que estenda a mão… Uma palavra que se transforma em realidade: a pessoa estendeu a mão e ficou curada!
A pessoa acolhe o convite de Jesus e tem sua vida transformada. Vai para o centro, ocupa o seu espaço e colabora com a revelação: o desejo divino é haja vida em abundância para todos! E Jesus, por se fazer solidário dos sofredores, encontra oposição entre as lideranças religiosas que começam a planejar sua morte (conforme Mateus 12,9-14; Marcos 3,1-6; Lucas 6,6-11). Jesus expressa o desejo de Deus que se torna realidade na resposta (poder) daquela pessoa (e de todos nós). Temos estendido as nossas mãos atadas, distantes e secas?
Esta mesma palavra, forte e libertadora, aparece no Quarto Evangelho. Diante da Comunidade paralisada pelo medo, Jesus convida seu discípulo Tomé a estender a mão e tocar suas feridas. Sinal de profunda intimidade! O Ressuscitado é o crucificado, ele carrega as marcas da fragilidade exposta na Cruz. Tocar as feridas, cuidar dos vulneráveis, ser solidário aos últimos e esquecidos é condição para viver a fé (adesão) ao Deus que armou sua tenda entre nós (conforme João 20,24-29). Este é o segundo passo para quem tem as mãos desatadas, tornar-se disposto a colocar a mão nas feridas deste mundo, reconhecendo nos que estão marginalizados a presença libertadora de Deus.
Algumas pessoas poderão objetar: como estender as mãos e tocar as feridas, em tempos de protocolos sanitários que insistem na contenção de troca de toques? Creio que antiga sabedoria poderá nos inspirar: “estenda a mão ao pobre, e você será plenamente abençoado; que sua generosidade se estenda a todos os seres vivos, e não negue sua atenção nem aos mortos.” (Eclesiástico 7,32-33)
No Primeiro Testamento, estender a mão é expressão que traduz a ação libertadora de Deus (Conforme Êxodo 14,15s). É bênção, palavra bem dita! Não se trata de magia, mas de longo processo que envolve nossas opções por caminhos, trilhas e estratégias. A libertação da escravidão do Egito não se deu da noite para o dia, envolveu gerações; nem resultou de atalhos, configurou-se em longo processo de despertar a esperança, a confiança e as lideranças que viabilizaram o processo libertador. (Certamente, muito inspirador para nossos dias.)
Urge sair de nosso individualismo, atentar para as muitas maneiras de nos aproximarmos uns dos outros, reconhecer nossas feridas e vulnerabilidades assim como a fragilidade dos outros/outras; e procurar atitudes renovadas que sinalizem a divina vontade de vida plena para toda a criação. Estender a mão ao outro é bênção, exercer a generosidade com todos é paz, gestos que nos convocam a sair de nós mesmos, com os limites atuais, encontrar formas criativas de nos fazer presença solidária e cuidadora. Assim reconheceremos nossa força para desatar as mãos, aninhar sonhos e ampliar os contatos: dons de Deus, nossa missão!
Paulinho
Em preparação ao Dia da Consciência Negra