Em uma recente declaração, o Profeta Leonardo Boff nos convidou à desafiadora atitude de pensar a própria existência em termos mais amplos: apesar do aparente caos, ou do que se supõe ser uma absoluta confusão, haveria um conjunto complexo de determinações sempre capaz de explicar cada elemento da realidade, dentro da qual tudo se conecta, em algum grau. Colocada de outra forma, a proposição significaria que, sendo sempre possível entender como chegamos aonde chegamos, seria também sempre viável delinear caminhos que nos levem a outros destinos. Vale dizer, haveria uma forma raciocinada de esperança.

Com efeito, não obstante o aparente absurdo de, em pleno século XXI, ainda tropeçarmos nos flagelos endêmicos da fome, da desigualdade, da violência, do desemprego, do crime – e do fascismo –, não é mero acidente a chegada a este estado de coisas. Não há nada aleatório neste suposto caos. Ele é o resultado de uma complexa construção histórica, social e política, da qual fizeram parte os tijolos da herança colonial e escravagista / racista, as vigas de ferro da tradição patrimonialista, patriarcal e autoritária, cimentadas por um capitalismo peculiar, que se moldou aos elementos anteriores; acrescente-se ao roteiro desta construção espasmos de desenvolvimento econômico (quase sempre socialmente excludente para quem vive do trabalho), entrecortando longos períodos ditatoriais com breves intervalos democráticos. A ausência de movimentos de ruptura expressiva com esse passado o torna ainda muito presente; daí a normalização do desemprego, do subemprego, dos serviçais – e a própria desvalorização do trabalho enquanto tal. Tem origem semelhante a ideia de que a incidência do crime esteja ligada a questões morais dos indivíduos, não à falta de outras oportunidades efetivamente disponíveis; daí também a ideia de que líderes políticos populares são, na verdade, “populistas”, tendo como único e real objetivo saquear o Estado. Logo, a saída estaria na rejeição à política (entendida como politicagem), com o apelo a uma solução de força que nos livrasse, a um só tempo, do “peso do Estado”, da falta de moralidade e da corrupção. E… bem, aqui estamos. Terá valido a pena?
Mesmo colocando de lado o evidente e tenebroso fato de que mais de meio milhão de pessoas perderam suas vidas no Brasil, em decorrência de uma pandemia que poderia ter sido enfrentada de outra forma, outros elementos da atual realidade nos levam a questionar os rumos tomados. Vejamos. O nível de consumo das famílias brasileiras vem mostrando quedas consecutivas, considerando os dados disponíveis até o primeiro trimestre deste ano – o que é bastante compreensível em função dos dados referentes à inflação e ao desemprego. De acordo com o IPEA, a inflação calculada até junho último mostra que houve alta de 9,24% (no acumulado de 12 meses) nos preços relevantes para famílias de renda muito baixa; esta alta foi de 9,04% para as famílias de renda baixa e de 6,45% para aquelas de renda alta – evidenciando o peso dos aumentos relativos a alimentos, gás e energia elétrica nos orçamentos dos mais pobres. Ladeando os aumentos no custo de vida, há dados assustadores no mercado de trabalho: o desemprego segue acima dos 14%, ao passo que, se forem somados aos desempregados também aqueles que têm seu trabalho subutilizado (e, portanto, se encontram em situação precária), chega-se a quase 30% das pessoas dispostas a trabalhar. Mesmo dentre aqueles que seguem empregados, registra-se uma visível redução dos rendimentos reais (ou seja, descontando-se a inflação).
Ainda que se possa atribuir à pandemia boa parte das mazelas na economia, cabe lembrar que o PIB já mostrava redução ainda três primeiros meses de 2020; de outra parte, foram escolhas de governo as que levaram ao fim da política nacional de estoques reguladores de preços de alimentos – escolhas também críticas com respeito à gestão das fontes de energia (eletricidade e combustíveis). De modo semelhante, as escolhas em prol da redução do papel do Estado mostraram seus evidentes custos sociais: limitações impostas ao SUS, penúria das universidades federais, falta de investimentos públicos na geração de energia – com ameaça concreta de apagões, mesmo com maiores custos da energia para os consumidores. Tudo isso, é claro, sem mencionar a coleção de indícios de corrupção que brotam desde Brasília, particularmente após a instauração de certa CPI. Ainda que se pudesse questionar como foi que chegamos até aqui, parece haver pouca dúvida de que o trajeto não valeu a pena.
Há muito tempo foi dito que o povo que não conhece (e entende) sua própria história está condenado a repeti-la; outros, talvez mais pessimistas, supõem que a história seja cíclica, pouco importando a maior ou menor consciência a seu respeito. Talvez fosse mais prudente apenas observar que, sobretudo no campo da Política (sim, com “P” maiúsculo!), são muito frequentes os movimentos pendulares: os horríveis e pesados traços do neoliberalismo na América Latina da década de 1990 cederam terreno à onda de governos nacionais progressistas que marcaram os primeiros anos do corrente século. A reação àqueles se fez brusca e bruta, conforme já sabemos. Hoje, o pêndulo já parece estar novamente mudando de sentido – tanto no Brasil quanto no resto do continente. Porém, para muito além de quaisquer análises rasas ou deterministas, lembremos que “povo escolhido” é – por questão de livre arbítrio – aquele que se escolhe. Ciente deste fato, e também dos elementos que forjaram nossa dura realidade, que nosso povo saiba se escolher como protagonista da própria história, e que esta escolha nos leve a uma nova casa comum, com lugar e dignidade para todas e todos.
Marcelo S. de Carvalho
Economista e Militante da Pastoral Operária na Arquidiocese de Campinas – SP