Quando me peguei pensando sobre o tema do artigo que escreveria para a Pastoral Operária, lembrei-me que essa é a minha primeira contribuição para o boletim como vereadora na cidade de Campinas. Eu, mulher negra, criada na periferia da minha cidade, filha de professora e da escola pública gratuita, agora vereadora.
Minha história de vida é, sobretudo, a história de várias mulheres e homens pretos que, como eu e tantas outras, tiveram nas últimas duas décadas alguma oportunidade de vencer a barreira racial e social que separa e marca a sociedade brasileira há séculos, desde o período escravista. Nos últimos 20 anos pudemos ver (e sentir) mudanças profundas no nosso país, principalmente quando pensamos sobre a vida da população preta. Pessoas pretas tiveram maior chance de acesso ao ensino superior por conta da política de cotas nas universidades; famílias periféricas, na maioria esmagadora negras, passaram a se alimentar melhor por conta do Bolsa Família; uma legião de brasileiros e brasileiras ascenderam da pobreza à classe média por conta de novas políticas de distribuição de renda e geração de emprego, podendo experimentar, pela primeira vez, olhar o horizonte como quem enxerga a esperança de um país menos racista e menos desigual.
Sim, avançamos. Mas ainda falta muito. Somos um dos países que mais matam pretos e pobres no mundo. Uma nação que encarcera em massa homens negros. Uma sociedade marcada por uma imensa desigualdade de renda, agravada pelo racismo estrutural que separa o Brasil entre privilegiados e excluídos, brancos e pretos. Um país que ainda teima em acertar suas contas com o passado escravista, que negou e ainda nega direitos a quase metade da nossa população, identificada como preta.
Contudo, sabemos que direitos, mesmo aqueles que mudam as vidas de milhões de pessoas, nunca estão garantidos. O governo fascista de Jair Bolsonaro nos mostra como pequenos avanços podem ser ceifados quando os donos do poder deixam de ter qual sensibilidade com as cicatrizes escravistas tolerar as significativas mudanças sociais e raciais. Hoje, as políticas sociais que mudaram a vida de milhões já não existem mais. O desemprego e a inflação geram fome. As políticas públicas de inclusão sofrem baixas diariamente. O presidente do país naturaliza e incentiva o racismo.
Acontece que o Brasil de 2021 não é o país de duas décadas atrás. Quem deixou a senzala não quer nunca mais voltar para ela. Quem teve acesso à educação não consegue esquecer o conhecimento que acumulou. Quem vislumbrou um Brasil de esperança não se contenta com o desalento. Os avanços conquistados marcaram não apenas a sociedade, mas os indivíduos que puderam usufruir deles. O movimento negro está mais sólido do que nunca, organizado, enraizado nas diversas regiões do país e pauta o debate público como nunca.
Acredito que nossa missão, daqui para a frente, está em torno de recuperar as bases que tornaram possível os avanços dos últimos anos: a democracia, as instituições da República, os programas de redução da desigualdade, de geração de emprego e renda. E devemos ir além, sem negociar com os herdeiros da casa grande os nossos direitos e as nossas vidas. O Brasil precisa avançar na pauta da violência policial, virando para sempre a página do genocídio preto nas periferias. Precisa, também, de uma reforma profunda no sistema de Justiça, ainda contaminado por uma elite racista e excludente. E, não podemos nos esquecer, precisamos de uma democracia que integre pretos e pobres aos partidos, parlamentos e executivos.
Tento me manter inteira até mesmo nos piores momentos. Acredito que nós, lideranças políticas e do movimento social, não temos o direito de perder a esperança. Fomos encarregadas de levar a esperança onde quer que caminhemos. Fomos eleitas para transformar as lutas em mudanças reais na vida daqueles que mais precisam. Só com esperança e força poderemos juntar os cacos deixados pelos que querem a nossa volta à senzala e reconstruir um país que caminhará para superar seus traumas, antirracista e mais justo para todes.
Paolla Miguel
Vereadora do PT de Campinas – SP