Livro de Josué: Conquista da Terra Prometida

Para nos situarmos no Mês da Bíblia, se tomar a lembrança desse quadriênio, nós estudamos em 2020 o livro de Deuteronômio, e em 2021 nós estudamos a Carta aos Gálatas. Neste ano, estudamos o livro de Josué, e no próximo ano (2023) estudaremos a Carta aos Efésios. Se observarmos bem, nós retomamos os dois anos anteriores, ou seja, na sequência natural ao livro do Deuteronômio, temos o livro de Josué, e a reflexão natural e continuada da Carta aos Gálatas é a Carta aos Efésios. Por que isso? Quanto à questão do Deuteronômio, e do livro de Josué, é como se o primeiro fosse a proposta, e o segundo a concretização. Já no eixo do Novo Testamento, a Carta aos Gálatas é a reflexão sobre a missão a partir do batismo, e a Carta aos Efésios é a consequência da missão e do batismo, que é a Igreja.

Livro de Josué - Conquista da terra prometida
Fonte da Imagem: Pastoral Operária Campinas – SP

Portanto, o livro de Josué vai tratar da continuação de toda a proposta do livro do Deuteronômio, através de uma liderança – a liderança de uma figura bem trabalhada na Bíblia, uma figura exemplar, que é um modelo. Josué é um modelo de liderança, tem a grande missão de estabilizar o povo na terra prometida. A condução, a liderança do povo, a capacidade de guiar o povo, se dá a partir de um projeto. O projeto contido no livro de Josué é o mesmo projeto que está no livro do Deuteronômio.

Por que Josué vai colocar o povo na terra prometida? Pelo mesmo motivo que levou Deus a tirar o povo do Egito e fazer a longa travessia através do deserto, ou seja, para dar essa estabilidade na terra. Só que aqui tem uma questão muito séria: a terra existe para o bem-estar do povo – é uma postura bem contrária de uma sociedade como a nossa, onde a terra está para lucro de poucos, onde existe um grande número de pessoas que não pode viver, morar em paz, trabalhar em paz numa terra, porque não tem terra.

O livro de Josué é um livro bastante desconhecido, e, ao mesmo tempo, de leitura perigosa, por este motivo, quando lemos o livro de Josué é preciso ter bem claro a necessidade de libertar o livro de concepções: colonizadora, doutrinária, dominadora e de violência (Js 1-12).

Essa terra que foi conquistada não pertence a um rei, não pertence a uma dinastia, essa terra pertence ao povo, a terra é dada ao povo por Deus, para que nela se possa morar, trabalhar, se sustentar e viver em paz – esse é o grande objetivo da terra. Vemos aqui a paciente distribuição dessa terra para as diferentes tribos, clãs e famílias. A liderança maior de Josué não está tanto na conquista da terra, mas em impor a distribuição dessa terra, evitar que surja aquele modelo destruidor agrário que existe no Brasil, de enormes latifúndios não mão de pouca gente, onde 1 família tem 10, 12, 15 fazendas enormes, enquanto todo movimento dos Trabalhadores Sem Terra perambula por aí para achar um pedaço de chão. A ambição e a ganância estão tirando a terra dos povos originários, dos povos indígenas – é uma guerra que não acaba nunca, estão se vendo cada vez mais acuados no que lhes resta de terra, sendo que o agronegócio não lhes deixa em paz e lhes mata. O índio é visto como aquele que atrapalha o progresso (Js 13-21).

Livro de Josué - Conquista da terra prometida
Fonte da Imagem: Pastoral Operária Campinas – SP

Josué instaura um processo de decisões (Assembleia de Siquém), de consulta ao povo, para saber os rumos a serem tomados, frutos de uma decisão coletiva, na qual todos tomam parte, opinam, votam, se manifestam, contribuem. À luz da assembleia popular encontrada nas comunidades de Josué, da mesma forma, o Papa Francisco propõe uma Igreja sinodal, que “caminha junto”, aproximando leigos, religiosos, padres e bispos em uma missão contínua de difundir o Evangelho, uma real e verdadeira participação e comunhão entre as pessoas (Js 22-24).

O livro de Josué descreve a luta do povo pobre, do campo especialmente, e também das estepes, das montanhas, os seminômades, que também se associaram a esse processo de construção de uma sociedade justa e fraterna, derrotando os reis e suas cidades-estado, que viviam à custa dos pobres com seus tributos (Js 1-12).

Deparamos-nos com uma aliança dos pobres do campo com os pobres da cidade para conquistar a terra. Trata-se de uma síntese do enfrentamento com esse poder, onde mostra que o enfrentamento não é de um povo contra outro povo – importante termo isso presente, mas é o enfrentamento da cidade e dos reis da cidade que oprime a grande maioria do povo. Na forma de conquista e posse da terra, sua forma circular de convivência nessa terra deixa evidente uma clara oposição à monarquia e tributação que sobrecarregam sobretudo a vida daqueles que estavam sendo empobrecidos, perdendo suas terras, seus espaços de sobrevivência, nas costas dos mais pobres. A “guerra santa” é o Deus dos pobres lutando contra a dominação dos opressores ancorada em idolatria. Deus lutando nas lutas do povo pobre contra as divindades manipuladas pelos poderosos – trata-se de uma guerra por justiça, por liberdade, por libertação da terra, que era cerceada pelos poderosos da cidade da época. Libertação da terra para reparti-la entre os pobres (Js 12,1-24).

Livro de Josué - Conquista da terra prometida
Fonte da Imagem: Pastoral Operária Campinas – SP

A terra partilhada é o caminho para uma vida social justa. Uma vez a terra libertada daqueles que a oprimem e exploram os que nela trabalham, a terra é repartida de acordo com a necessidade dos clãs, das tribos, para que, aqueles que antes eram oprimidos, agora possam viver livres e da produção na terra, podendo viver sem rei, de uma forma alternativa, em clãs (grandes famílias), e em clãs associados em tribos. No capítulo 24 fazem uma aliança de fidelidade a esse projeto com o Deus que está com eles nesse projeto – Que Deus é esse? O DEUS DO ÊXODO, contra os ídolos da cidade, que manipulam as divindades para oprimir (Js 13-24).

O pano de fundo para a leitura do livro de Josué é a monarquia do século VIII, sob o reinado de Josias, onde a conquista é fortemente marcada sob o jugo do povo, tido como “povos sem pertença”. Lembramos de Raab e outros povos cuja memória se faz presente no livro, aonde vai se fortalecendo um conceito de território, ou seja, de dominação, onde não cabem outros povos, a questão de raça eleita, todos em torno de um único Deus, ou seja, quem não segue esse deus é expulso, destruído – os esquecidos da e na história. Basta ver os processos de colonização em nossa história e de Israel.

O extermínio da população em nome de Deus também é narrado na Bíblia. Uma das narrativas mais conhecidas é a destruição de Jericó, em Js 6. Lendo a narrativa da conquista de Jericó, como a história de um fato, surge uma questão: por volta de 1200 a.C., ocasião da conquista de Josué, Jericó não tinha muralha e talvez nem fosse habitada, pois já havia sido destruída há dois séculos. A narrativa de conquista, então, não pode ser lida como crônica histórica dos fatos. A primeira redação do livro de Josué foi composta por volta do ano 620 a.C., pelos escribas do rei Josias, motivados para propagar os planos de guerra da corte: integrar o reino de Judá (Sul) e o antigo reino de Israel Norte num reino unido de Davi, em torno do Deus Javé e sob o comando de Josias, descendente da casa davídica. Assim, a conquista de Jericó, principal cidade do antigo reino de Israel Norte, é descrita com a intervenção miraculosa de Javé, Deus do Estado de Josias, exterminando a população local.

Livro de Josué - Conquista da terra prometida
Fonte da Imagem: Pastoral Operária Campinas – SP

Desmond Tutu (1931-2021), arcebispo da Igreja Anglicana da África do Sul e Nobel da Paz (1984) nos falou: “Quando os missionários chegaram à África, eles tinham a Bíblia e nós a terra. Disseram-nos: “Vamos rezar”. Fechamos nossos olhos. Quando os abrimos, nós é que estávamos com a Bíblia e eles com a terra. Algo semelhante ocorrido no Brasil?

Josué é um desafio para hoje libertarmos a terra das mãos dos latifundiários, dos poderes que a oprimem e exploram, ou não deixam os pobres, ou mesmo os povos originários ter acesso a ela. Além das muralhas que hoje defendem o latifúndio e o agronegócio, há tantas outras muralhas que precisam ser destruídas. O livro de Josué é carregado de um registro, de um pedaço da história, de um movimento heroico, épico, de divindade – esse modelo revela onde o sagrado não está: na ordem estabelecida pelo capital, violência, injustiça, desigualdade, preconceito, silenciamento das mulheres, não está no sistema excludente que mata tanta gente. Como ler o livro de Josué na perspectiva dos povos originários – ter o cuidado em não assumir uma leitura triunfalista.

Precisamos lutar também contra a criminalização das lutas do povo. Só eles, os poderosos, acham que podem praticar violência – usam a lei, as instituições (que chamam de democrática), mas o pobre não pode resistir, mas como não pode? Portanto, o livro de Josué, neste sentido, defende as lutas do povo, um livro escrito provavelmente no exílio, e relido no pós-exílio, quando o povo é escravo, sem-terra, e precisam libertar de novo a terra das mãos dos que a oprimem, e oprimem quem nela trabalha (ou quer nela trabalhar). A luta por liberdade e justiça tem o aval de Deus, e a conquista da terra, que é dom de Deus, é um projeto divino.

Romualdo Polonio

CEBI – Campinas – SP