Livro de Josué: Uma Luz para o 28º Grito dos Excluídos e Excluídas

No dia 7 de setembro de 2022, dia em que o Brasil recorda seus 200 anos de independência de Portugal, de norte a sul do país, as manifestações populares nos dizem que a independência política e econômica tem de ser completada por verdadeira libertação de todas as pessoas que vivem no país. Por isso, é importante que todos e todas escutem o grito das multidões de brasileiros e brasileiras ainda excluídos/as dos seus direitos básicos. O tema deste 28º Grito resume gritos novos e antigos em um só assim formulado: “Vida em Primeiro Lugar! Brasil: 200 anos de (in)Dependência, para quem?”.

Livro de Josué: Uma Luz para o 28º Grito dos Excluídos e Excluídas
Fonte da Imagem: Vermelho.org.br

Juntamente aos gritos de homens e mulheres de todo país, neste Mês da Bíblia, a Igreja nos lança um desafio para que possamos refletir juntos o Livro de Josué – sinal de conscientização e libertação de interpretações errôneas e manipuladoras, onde é preciso ter bem claro a necessidade de interpretar a vida com a ajuda da Palavra de Deus, e, consequentemente, libertar o livro de concepções colonizadora, doutrinária, dominadora e de violência, que tanto tem legitimado a imagem de um falso deus do Estado, repleto de ódio e vingança, com supostos “inimigos” e acima de todos.

Estamos inseridos num momento político que carece de uma interpretação bíblico-teológica, onde a religião vem sendo utilizada para disseminar ódio, vingança, benção x maldição, manipulação de Deus como legitimador de um (des)governo sem compromisso com a vida do povo pobre e sofredor. A “defesa” da moral e das “pessoas de bem” são discursos recorrentes para ludibriar famílias que mal conseguem sobreviver em meio ao desemprego, à fome, à falta de saúde, à péssima educação, onde o que predomina é uma economia sem coração e sem religião, cujos “necessitados” são os que lucram às custas do capital especulativo.

Deus está ao lado do povo, “Ele está no meio de nós”. A Bíblia recorda que Deus “viu a aflição, ouviu o clamor e que conhecia o sofrimento do seu povo que estava no Egito” (Ex 3,7), decidiu descer da condição “acima de todos” para livrar Seu povo da mão dos egípcios e conduzi-lo à uma terra em que pudesse viver em paz (Ex 3,8). Propõe um caminho da liberdade e autonomia responsável, baseado na Sua presença e no Seu amor. Portanto, a proposta contida no Êxodo é concretizada no livro de Josué.

O livro de Josué é redigido em ambiente monárquico do século VII a.C., sendo que essa monarquia israelita é gestada dentro do próprio tribalismo, onde o excedente fez com que uma classe surgisse: a de proprietários de terra (criadores de gado grande: vaca e o boi). Esses começaram e diferenciar-se socialmente, em detrimento daqueles que vão sendo marginalizados pelo sistema, tornando-se mercenários. A fim de proteger o seu gado, manter relações com as cidades e as rotas comerciais, eles começam a patrocinar iniciativas rumo à monarquia, chegando mesmo a iniciá-la com Saul, estabelecê-la com Davi e solidificá-la com Salomão. No entanto, a chegada do Estado traz consigo um aparelho estatal, onde todo um corpo de funcionários públicos é montado pelo rei e sustentado pela tributação. A terra que servia para produção de alimentos passa a ser utilizada como pasto, e boa parte da produção de alimentos deve ser direcionada para alimentar esse animal. Além de transformar terras agricultáveis em pasto, o que requer boa parte da produção de alimentos para a sua dieta, o boi toma o lugar das pessoas na roça.

A (in)Dependência do Brasil é marcada por lutas, verdadeiras guerras travadas pela soberania de um povo marcado pelo sofrimento político, econômico e até religioso. À luz do livro de Josué, é preciso identificar a verdadeira luta contida em suas páginas, que, em hipótese alguma, é de um povo contra outro, mas de povos oriundos de diversos êxodos, que se juntam para retomar a terra, que é dom de Deus. Na antiguidade, as guerras eram entendidas como “guerras santas” – quem vencia a guerra tinha um Deus mais forte (uma guerra entre divindades), cujo objetivo era derrotar os deuses – vencidos. Aqui é preciso entender a vida como uma luta de classes: sempre existiu, e não adianta escondê-la. Jesus foi morto por causa disso, dentro de uma luta de classes ele é morto. Quando digo que uma guerra ganha o Deus mais forte, cabe aqui uma pergunta: qual Deus está vencendo essa luta de classes? A que Deus estamos servindo?

Desde a descoberta (conquista) do Brasil, passando pela sua (in)dependência, vivemos um processo de colonização branca e elitista. O livro de Josué nos quer contar que a junção da conquista da terra com a liderança, como instrumento de Deus, resulta na conclusão que em Josué a conquista da terra é um projeto divino e acessível a todos e todas. De difícil leitura, o livro é um dos mais manipulados de toda a Bíblia, ele fundamenta e dá base para vários projetos genocidas, o livro de Josué era um livro que fundamentava o Apartheid na África do Sul, onde os colonos brancos, principalmente os de origem holandesa, tinham essa leitura bíblica fundamentalista na cabeça: “nós somos o povo eleito, a África do Sul é nossa terra prometida e os povos negros são os cananeus. O que nós vamos fazer? Matar, expulsar, segregar! Porque essa é a vontade de Deus!”

A mesma coisa vale para a América Latina, para a conquista branca no Brasil: “nós somos o povo eleito, os índios são os cananeus, essa terra é nossa terra prometida, a conquista da terra é um projeto divino”. Não é por acaso que a colonização brasileira era feita através da espada (exército português) e através da cruz, sendo que ambos trabalhavam juntos.

Deus faz uma aliança com o povo, é presença ou ausência na vida do povo, pois Ele nos coloca a verdade e a mentira à nossa frente, e ELE ESTÁ NO MEIO DE NÓS à medida que nos esforçamos para caminhar na verdade (Dele, e não a minha). No livro dos Gênesis é bem claro isso, ou seja, entre que vem de Deus e a mentira que vem da serpente, se faz opção pela mentira que vem da serpente. Hoje, cerca de 30% do povo brasileiro ainda está envenenado pela mentira que vem da serpente. Qualquer ação que demonstre infidelidade do povo, isso significa ausência de Deus – e isso está bem claro no livro de Josué.

A terra é repartida, a terra não pode ser acumulada! Deve garantir a vida para todos e todas! Por isso que Josué, do capítulo 13 ao 21, vai tratar da repartição dessa terra, ela não pode ser acumulada por uns poucos, a terra é a grande herança que Deus deixou para o povo, ela não pode ser vendida, não pode ser comercializada. Para o profeta Oséias, cada vez que você vende alguma coisa que é fruto da sua mãe, você está prostituindo a sua mãe. Para Oséias, toda comercialização da terra ou dos produtos da terra, ele define isso como prostituição. A terra implica cidadania e dignidade.

O livro de Josué aponta para um grande ideal, uma sociedade perfeita, onde a terra é repartida com todos/as. Onde é que existe isso? Ideal de uma sociedade onde todos/as são donos daquilo que produz. Onde existe isso? Que todos caminhem dentro dos mandamentos da Lei de Deus. Onde é que existe isso? Que tudo seja partilhado entre todos e todas. Onde é que existe isso? Portanto, o livro de Josué é um livro muito idealizado, é como se o livro dissesse assim: o povo teve condições de viver a aliança! Daí, vem os profetas e vão dizer assim: “eu vou dizer por que o povo não conseguiu viver a aliança, querem saber? Por ganância! O que quebra a aliança é a ganância, ela gera violência, a violência gera a morte”.

Josué é um livro muito atual – possui um apelo bem forte de uma espiritualidade ecológica, a questão da terra no Brasil, proteção das terras indígenas (o olho gordo do agronegócio), a questão da liderança (ano de eleição), e por fim, a proposta de uma igreja de comunhão e participação, através do processo sinodal. Todos nós somos convidados e convidadas a contribuir na definição dos rumos da nossa igreja (universal, diocesana, paroquial) – pela dignidade de batizados e batizadas que somos.

A unidade coletiva dos sem-terra do tempo de Josué é memória viva e luz para trabalhadores e trabalhadoras que travam verdadeira luta contra a ultradireita do Governo Bolsonaro – a defesa da terra e o acesso a ela, o direito ao trabalho, salário e moradia digna, alimentação, o direito de cada um e cada uma ser quem é – a defesa da própria vida.

Romualdo Polonio      

CEBI  – Campinas – SP