Mar revolto. Oceano de possibilidades?

Uma onda de reações positivas varreu o mundo após o resultado das eleições brasileiras de outubro de 2022. De fato, as manifestações oficiais de apoio por parte de governos nacionais de praticamente todos os continentes vieram a público ainda nas primeiras horas depois do anúncio do resultado oficial do pleito, mostrando tanto um apreço pela preservação das instituições democráticas quanto a importância do Brasil no cenário geopolítico. E nada disso é exagero.

Mar revolto. Oceano de possibilidades?
Fonte da Imagem: Eu Sem Fronteiras

Há mesmo quem diga que nosso país tem sido uma espécie de amostra ou de laboratório para aquilo que ora se passa ou poderia ocorrer em outras partes do globo. Desde a deposição da presidenta democraticamente eleita – e sem crime de responsabilidade que o pudesse justificar – em 2016, e com possível paralelismo de lawfare em outras nações da região, o solo pátrio tem sido palco de acontecimentos que, em alguma medida, se fazem notar em países como Hungria, Itália, Polônia, Filipinas, Israel, entre tantos outros exemplos possíveis. A explosão de grupos de extrema direita é, lamentavelmente, um fenômeno mundial, e ele trouxe consigo a constituição de governos aberta ou parcialmente totalitários, com frequência associados a tentativas de perpetuação no poder. Assim sendo, não é surpresa que os olhos do planeta estivessem voltados à eleição mais disputada das últimas décadas naquela que é (ou costumava ser) a maior democracia (ainda que jovem e imperfeita) da América Latina. Uma vitória do extremismo de direita por aqui seria um forte indício de sucesso e vitalidade da internacionalização desse tsunami, com possibilidade de impactos até mesmo ao norte do México; com efeito, em recente entrevista do professor Paulo Arantes, havia a forte preocupação com desdobramentos sociais potencialmente desastrosos desse extremismo (proto)fascista: segundo o veterano docente e pesquisador da USP, os dois países do mundo mais propensos a uma guerra civil seriam, precisamente, Brasil e Estados Unidos. Logo, o mar mostra-se revolto aqui e alhures…

No que diz respeito especificamente à Terra Brasilis, vemo-nos diante de uma tarefa de reconstrução nacional, considerado o tamanho do desmonte e da destruição observados nos últimos seis anos. Porém, é preciso ter em mente que a vitória tática sobre o projeto autoritário se fez com o recurso à mobilização de uma frente ampla, com abrangência tal que se estende da centro-direita à esquerda do espectro político; o governo federal que concretamente emerge dessa circunstância guarda toda a heterogeneidade dessa composição diversificada. Portanto, já desde dentro, o governo enfrenta óbices à consecução de medidas mais efetivas de recomposição do Estado para dar cabo da atenção à população mais (e urgentemente) necessitada – cumprindo, aliás, determinações da própria Constituição Federal a esse respeito. Desde o lado de fora, há que lidar ainda com os volumosos resquícios da maré direitista, com destaque para seus representantes nas forças de segurança, no neofundamentalismo cristão e no mercado financeiro, além, é claro, dos atores externos interessados em manter em xeque a soberania nacional brasileira. Nota-se, dessa forma, que a barca do atual governo navega sob constantes ameaças de naufrágio (já desde a primeira semana de mandato, é preciso lembrar!).

Na prática, a referida tarefa de reconstrução nacional vai ter de lidar com uma série de tempestades, já visíveis no horizonte próximo, dentre as quais se poderiam citar: um congresso com composição desfavorável a demandas populares (numa mistura de conservadorismo e fisiologismo); a consequente dificuldade de aprovar reformas que mudem pontos fundamentais das estruturas econômicas e sociais (como no caso da redefinição de regras para a política fiscal, da reestruturação das relações de trabalho, da revisão de muitas das privatizações); um banco central independente (do governo eleito pelo povo, mas não dos interesses e dos representantes diretos do mercado financeiro); fetiches ideológicos relativos à capacidade fiscal do Estado e à natureza da dívida pública (o que poderia reduzir a margem de manobra do governo para investimentos, especialmente); as consequências da retração do escopo de ação do governo federal em áreas estratégicas (como nos campos da pesquisa básica, da energia – com destaque para os casos de Eletrobras e Petrobras –, da regulação e fiscalização do trabalho, da previdência e do meio ambiente).

Já nos ensinavam, porém, os antigos navegantes portugueses que é possível velejar a contravento. Uma das pouquíssimas vantagens de termos, correntemente, um nível estagnado de rendimentos reais do trabalho (graças à inflação elevada dos anos recentes), sobretudo para a população de mais baixos níveis de renda, é justamente o fato de que mesmo baixos incrementos de remuneração aí se traduzem quase que totalmente em gastos de consumo das famílias, o que tende a produzir visíveis efeitos macroeconômicos de crescimento. Portanto, se não abortado (pelos altos juros ou por amarras fiscais ficcionais), um movimento de recuperação econômica pode advir exatamente daí, já supondo também alguma recomposição dos programas de transferência de renda e do poder real de compra do salário-mínimo. Para dar cabo dessas medidas, o governo federal parece estar empenhado na busca por retomada da sua capacidade de arrecadação fiscal, tanto por via da extinção de isenções espúrias (muitas delas concedidas ao apagar das luzes do último governo) quanto através de uma reforma fiscal (ainda em construção, mas que se anuncia mais progressiva que o cenário atual).

Adicionalmente, há favoráveis expectativas referentes à retomada do papel do Brasil junto aos BRICS, com destaque para a normalização das relações com a China e para o potencial de novos investimentos diretos estrangeiros com esta origem. De outra parte, há também o potencial de algum nível de dinamismo econômico – regionalmente descentralizado, aliás – com a reativação de obras federais paradas em todo o país, iniciativa que tende a se mostrar mais célere que a aprovação de novos projetos de infraestrutura. A reativação do papel dos bancos públicos (com destaque para o BNDES) no financiamento às micro, pequenas e médias empresas (grandes absorvedoras de mão de obra), a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos (crucial para a agricultura familiar) e a proposta de reestruturação das dívidas das famílias (cooperando para sua capacidade de compra de bens duráveis) também se alinham às outras iniciativas que têm por foco prioritário a melhora das condições de vida da população mais pobre.

Mais que mera oportunidade de crescimento econômico (por mais concreta que esta efetivamente o seja), tem-se aí uma possibilidade ainda muito mais frutífera (por mais abstrata que pareça), qual seja, aquela da reativação dos vínculos entre um governo popular e a sociedade civil organizada, particularmente na figura dos movimentos sociais. Uma retomada de níveis mínimos de conforto material à população mais pobre pode contribuir para forjar uma sólida base de apoio político, para além dos canais políticos formais.

João Cândido, o famoso navegante negro
Fonte da Imagem: Aventuras na História

Citando um conhecido texto da lusofonia, “navegar é preciso” – mas viver dignamente também o é. Disso nos lembra a brava história de João Cândido, o famoso navegante negro, que não aceitou navegar de qualquer jeito, em termos não condizentes com o respeito à dignidade do povo mais humilde. Que seu valoroso exemplo nos sirva de referência, a nos guiar pelas possibilidades que se abrem no oceano da História a cada vez que o povo assume o leme.

Marcelo S. de Carvalho

Pastoral Operária Campinas, SP