Peço licença aos meus antepassados, homens e mulheres trazidos da África: retirados de suas terras e de seus ares, contra a própria vontade, despojados de dignidade, envergonhados por existir, abandonados em estranhos destinos… Quero, em seu nome, buscar a luz da verdade na sombra da dor!
Peço licença aos que virão, meninos e meninas, àqueles e àquelas que em breve nascerão nestas trilhas e sob este céu que hoje percorro… Quero, por sua vinda, assumir minha pretinhosidade, sem atalhos no destino, no som de um grito oprimido, do choro contido no açoite do algoz.
Reconhecer minha historicidade: a responsabilidade de agora resistir ao peso de um pretenso cristianismo -empresa colonial- que alcançou seus lucros, acumulando negros músculos na manufatura da escravidão, aprisionando minha nobreza, mergulhando minha cultura na lama dos porões de senzalas e camburões!
Ouso, insisto em sonhar outros caminhos, outros cantos, outras rezas com muito amor. Sou tantos e tantas, de norte a sul, me reinvento nas rodas de samba, dos bambas, dos santos e santas, no batuque, no gingado, no molejo, sou-somos periferia, quebradas, fundos de quintal, roças e terreiros, paixão e carnaval…
Não venho (não vamos) clamar por vingança, emprego em minha andança o divino suor da esperança, para gerar novo tempo e superar toda arma, alimento a alma no mais profundo amor… Sou ritmo e poesia, versando e rimando, na boca e nos becos de manos e minas! Desejamos paz, queremos luz, segurança alimentar e saúde em todo lugar!
Chega de bala perdida em certo endereço, de incertas investidas em nossos terreiros… Basta de intolerantes batidas em festas ou giras; chega de deputadas e justiceiros à cata de pretensos arruaceiros! Chega! Basta de carimbar em nossa pele: a droga, a malícia, a vergonha, a preguiça e a malandra execução! Chega de racismo e estrutural segregação, “peles negras em brancas máscaras”!
Ao tomar consciência de quem somos, presto atenção à nossa respiração; ao ar que recebemos aqui e agora, que a todos e a tudo, envolve e penetra, que foge a propriedades e ignora muros e cercas! Chegamos, estamos aqui!
Para lembrar o fundo da terra e o ventre da noite que somos, estamos aqui!
Para chorar a morte nos mares e nos hospitais, nas esquinas e quintais, herdeiros do banzo nós somos, estamos aqui!
Para rezar o rosário dos pretos, dos cultos e benditos, dos santos malditos que somos, estamos aqui!
Para criar no chão da oficina, na laje da loja, no som e nas formas da arte negada que somos, estamos aqui!
Para cantar nos trens suburbanos e nas lotações, com a vida entre os dentes, vibramos, estamos aqui!
Para clamar contra as velhas correntes, o medo vigente, os ricos fogões, os pobres bordeis, a carne vendida que somos, estamos aqui!
Para gingar nos grandes estádios, nas escolas de samba, o desejo de vida que somos, estamos aqui!
Para cobrar a memória das velhas senzalas, das novas favelas, das margens do mundo… estamos aqui!
Para dançar ao som dos tambores, no chão dos quilombos, nas roças e ruas, a nova quizomba que somos, estamos aqui!
Para lutar por um novo Palmares, um novo morar, com justiça e paz que juntos almejamos! Por isso, estamos aqui! Para superar o ventre das Minas, os tristes mocambos, os gritos calados, as covas sem nome, a cruz dos engenhos, o batismo forçado, a reza negada, a fé debochada, marcados a ferro que fomos… queremos sonhar!
Bem-te-vi cantar e resistir. Seja esta a nossa escolha, seja assim a nossa escola! Com a licença de meus antepassados, minha mãe e meu pai; com a bênção de minha filha e daquelas e daqueles que virão! Axé!
Pe. Paulinho