Não temos outra missão que o Projeto de Jesus

No mês missionário, oferecemos esta breve reflexão sobre o Evangelho Segundo Lucas, Capítulo 4,16-21. Vamos primeiro à leitura do texto.

Não temos outra missão que o Projeto de Jesus
Fonte da Imagem: SaraPlay

16. Jesus foi a Nazaré, onde se havia criado. Conforme seu costume, no sábado entrou na sinagoga e levantou-se para fazer a leitura. 17. Deram-lhe o livro do profeta Isaías. Desenrolando o livro, Jesus encontrou a passagem onde está escrito: 18. “O Espírito do Senhor está sobre mim porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos 19. e para proclamar o ano de graça do Senhor.” 20. Em seguida, enrolou o livro, o entregou na mão do ajudante e sentou-se. Todos na sinagoga tinham os olhos fixos nele. 21. Então começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que vocês acabam de ouvir.”

A passagem lida por Jesus corresponde a Is 61, 1-2. Jesus encontra o texto (certamente já o conhecia) e interrompe a leitura antes da segunda frase do versículo 2 que afirmava, na sequência, “e um dia de vingança de nosso Deus”.  A missão profética de Jesus não seguirá a ótica da vingança e da violência. Não é pouco o que ele faz nessa sinagoga. Deve ter espantado a muitos ouvintes. Deixa claro aos ouvintes qual sua missão e de que lado está. Em diversos momentos Lucas afirma que Jesus é conduzido pelo Espírito de Deus e, portanto, está na linha dos antigos profetas bíblicos precedidos por Elias e Eliseu. Em síntese, o Projeto de Jesus é o cumprimento do projeto de Deus. Observem que a missão de Jesus não é religiosa, mas de fé. Fé que envolve novas relações políticas, sociais, econômicas, culturais e, também, de relação com Deus.

Não temos outra missão que o Projeto de Jesus
Fonte da Imagem: Brasil de Fato

Naquele tempo, o povo de Jesus vivia a violência e opressão pelo domínio do Império Romano e da ocupação de seu território, mas também da religião judaica oficial que separava as pessoas em puras e impuras segundo uma centena de leis criadas alguns séculos antes de Cristo. Embora muitas dessas leis tivessem, em seu início, uma boa intenção e um propósito de defender a vida das pessoas, ao serem interpretadas de forma nacionalista e excludente, passaram a representar um segundo cativeiro para os judeus e judias da época, sobretudo para os pobres, enfermos, mulheres e estrangeiros.

A leitura de Isaías escolhida na sinagoga, ao mesmo tempo em que inaugura a missão de Jesus entre os seus, interpreta a sua vida até o seu destino. Para os quatro evangelhos, Jesus anunciou a boa nova aos pobres. A boa notícia para eles é porque são pobres e necessitados de Deus (e não porque sejam puros, santos, cumpridores da lei ou da raça de Jesus…); por isso sua condição mudará. Em Mt 5, Jesus afirma que aos pobres e mansos pertence a herança (a terra, nova sociedade construída na paz e na justiça) e deles é o Reino de Deus (veja também Lc 6,20s). Em sua prática, Jesus libertou a homens e mulheres presos pelo sistema opressor e lhes devolveu a visão (de sua dignidade como seres humanos, visão também de fé e de esperança). Em toda a bíblia, se reconhece que o Deus Javé, o Deus de Jesus, é o Deus libertador dos oprimidos. E Jesus, com essa leitura, anuncia que esse projeto é promessa e vem da gratuidade de Deus: o ano da graça! Observem que tudo o que é prometido por Deus ou por Jesus nos evangelhos é de graça. Salvação não se compra nem se vende.

Com essa narrativa se inaugura, pois, a missão de Jesus para o evangelho de Lucas. O texto nos ajuda a entender as razões e o alcance da missão de Jesus. Embora esteja em sua terra, Jesus pisa em campo minado. Nos versículos seguintes a esse texto que aqui refletimos, os conterrâneos de Jesus o criticam enquanto ele interpreta a Escritura (v.23). Quando ele declara que também os antigos profetas não foram aceitos em sua terra, mas sim pelos estrangeiros, se enfurecem, o expulsam da cidade e tentam matá-lo (Lc 4, 28-29).

A prática de Jesus segue a perspectiva dos antigos profetas de Israel. Aqueles identificavam que a exploração do povo trabalhador e a escravidão (contrárias ao projeto de Deus) eram consequência da corrupção do direito e da justiça. Isaías, por exemplo, falava dos direitos perdidos por decreto dos poderosos (Is 10,1-3). Nenhuma novidade para os dias de hoje.

Os trabalhadores e trabalhadoras de hoje testemunhamos um mundo em transformação, onde continuamente direitos nos são retirados, onde os pobres vivem sob constante ataque e até mesmo ódio e ameaças. Pouco mudou o mundo nesse sentido. Os pobres, explorados e oprimidos de hoje (ainda mais se mulheres, negros, LGBTQIA+, povos nativos, ribeirinhos, quilombolas, moradores de rua…), que para Jesus são os preferidos de Deus, são os descartáveis para esse mundo capitalista e perverso, alvos de desprezo e ódio.

Quem são os poderosos que nos tiram direitos hoje e não se importam com a fome, o abandono e a morte de milhões de brasileiros? Muitos travestidos de gente de bem, que se dizem cristãos e honestos. Teriam tanto poder se não houvesse entre nós, tantos cristãos cegos e egoístas? Há muitos que hoje se dizem cristãos e se têm por puros, santos, cumpridores da religião e da moral…, mas não se importam com as estruturas que excluem os pobres e oprimidos, elegem políticos que os representam em seu ideal hipócrita de família e moral para retirar direitos e aprofundar privilégios. Uma sociedade desigual é seu próprio espelho. Com certeza, se todos os que sinceramente desejam ser cristãos realmente seguissem as opções e o projeto de Jesus dos evangelhos, nosso mundo seria diferente e viveríamos em paz.

Silvana Suaiden

Teóloga biblista e professora universitária