Notas Sobre a Retomada da Caminhada Civilizatória

Notas Sobre a Retomada da Caminhada Civilizatória
Fonte da Imagem: FreeJPG

Em 30 de novembro de 2021, no texto O trabalho uberizado e o Poder Judiciário: decisões atuais e perspectivas para o futuro, apresentado no seminário “Desafios do trabalho contemporâneo: desenvolvimento sustentável e justiça social”, organizado pela Diretoria Executiva de Direitos Humanos da Unicamp, mostrou-se que, segundo Belluzzo, em Angústias Individualistas, a globalização revigorou a concorrência entre Estados, empresas e indivíduos, exacerbando certas tendências inscritas no DNA do capitalismo: i) mercantilização acelerada de todas as esferas da vida; ii) universalização da concorrência; e, iii) concentração do poder econômico e político. Mais recentemente, Robert Reich[1] alerta que a concentração da riqueza nas mãos de cada vez menos pessoas aprofunda as desigualdades e concentra poder, com graves riscos à democracia.

Como os dados e as experiências evidenciam, países que aderiram à globalização com esses contornos apresentam grande vulnerabilidade, altíssimo desemprego, informalidade, rotatividade da mão de obra e precarização, com expressivo aumento dos desalentados, dos sem direitos travestidos em “empresários de si próprios”, MEIs, PJs, informais, cenário em que as mulheres e, entre elas, as negras, são as mais penalizadas. É intenso o processo de cisão da classe trabalhadora, com fragilização das organizações sindicais. As instituições republicanas são atacadas (Biavaschi, 2007). Apesar das promessas dos defensores das reformas liberalizantes levadas a efeito, sobretudo, a partir do golpe institucional de 2016 que depôs a primeira mulher eleita Presidenta do Brasil, em especial a trabalhista de 2017 e as medidas provisórias subsequentes, o que temos é um mercado de trabalho com históricas assimetrias aprofundadas, milhares fora da força de trabalho e, os que estão dentro dela, vivenciando alarmante da informalidade, dos “por conta própria” e da precarização (CESIT, 2021), muitos no loca-loca das plataformas digitais, realidade que a mal conduzida pandemia da COVID 19 tratou de escancarar e aprofundar. Nesse cenário, indivíduos, no desespero da luta pela vida, pressionados pelo desemprego e pelo aumento da insegurança diante de um Estado que perde seu potencial regulador, aparecem destituídos da capacidade de organização coletiva, criando-se ambiente propício para que uma onda conservadora tome conta do imaginário popular, como antecipara o saudoso Chico de Oliveira na década de 1990 (Oliveira, 1996).

Nestes tempos em que o capitalismo busca realizar sua essência, ele encontra no Brasil de resilientes heranças patriarcais, escravocratas e monocultoras, condições estruturais para se expandir. Na vigência de rígido programa de ajuste fiscal – a Emenda 95/2016 congelou o teto do gasto público por 20 anos – são imensos os impactos econômicos e sociais, com reflexos negativos, sobretudo, na educação, na saúde e na implementação de políticas públicas indispensáveis à população mais necessitada. Nesse processo, renda e riqueza concentram-se ainda mais, aprofundando as desigualdades e intensificando a violência no campo e nas cidades. Com o aumento do desemprego e da informalidade, a organização coletiva dos trabalhadores perde força, fragilizando-se os diques ao livre trânsito de um capitalismo sem peias, movido por seu desejo insaciável de acumulação de riqueza abstrata (Belluzzo, 2013; idem, 2019). O sistema público de proteção ao trabalho, duramente construído de forma sistemática no Brasil a partir de 1930, pari passu ao tardio processo de industrialização e que, com avanços e recuos, passando pela CLT de 1943, pela ditadura civil militar instaurada em 1964, chegou à Constituição de 1988 que elevou os direitos trabalhistas até então conquistados à condição de sociais fundamentais, ampliando-os aos rurais e domésticos remunerados, até então excluídos dessa proteção (Biavaschi, 2007). Desde então, esse sistema passou a ser duramente atacado. A “reforma” trabalhista de 2017 e as medidas provisórias subsequentes são exemplos desse ataque regressivo.   

Diante do passado colonial do Brasil, escravocrata e patriarcal e primário-exportador de matéria prima e de seu tardio processo de industrialização, são persistentes as assimetrias e o excedente estrutural da força de trabalho, cuja dinâmica econômica tem sido insuficiente para incorporá-lo ao mundo formal. É grande o contingente de alijados do sistema público de proteção. Essas assimetrias histórico-estruturais, aprofundadas pelas formas liberalizantes, em especial a trabalhista de 2017 e pelas medidas provisórias subsequentes, foram agravadas durante a pandemia da COVID 19. As medidas de governo para o enfrentamento da crise sanitária seguiram os fundamentos da “reforma” trabalhista de 2017, esta comprovadamente ineficaz para concretizar o dever/poder do Estado de atender às necessidades da população trabalhadora. Assim, além de contribuírem para acirrar as desigualdades sociais, não permitiram que os direitos à vida e à saúde fossem assegurados e, muito menos, que as crises sanitária e econômica fossem enfrentadas, na contramão, inclusive, de medidas adotadas por outros países, mesmo periféricos, e da Nota Técnica do GT Mundos do Trabalho do Cesit[2] (Biavaschi; Vazquez, 2020). Na pós-pandemia, a atuação enfática do Estado, via gasto público e política fiscal e monetária ativas, torna-se cada vez mais imprescindível, inclusive para ativar a demanda por consumo, reprimida diante da redução substantiva da renda do trabalho.

Daí a necessidade de uma tela pública de proteção que a todos e todas trabalhadoras integre, em igualdade de direitos e garantias, com instituições bem estruturadas e aptas a lhes dar eficácia. Mas não só. Como questão pressuposta, o Estado deve ocupar papel central, inclusive como empregador em última instância, para absorver esse excedente da força de trabalho em atividades na sua estrutura de oferta de bens públicos, como saúde, educação, política de cuidados, habitação, cultura, entre outras e, concomitantemente, disponibilizar recursos para construir e políticas de geração de emprego e renda destinadas aos desgarrados da proteção social.  São reflexões que, por um lado, conduzem a que se pense no papel efetivo do Estado na caminhada da reconstrução de um Brasil vitimado por grave processo de dissolução das relações sociais em suas múltiplas expressões e, no campo do trabalho, das salariais, sendo violento o ataque às normas trabalhistas e às instituições do trabalho aptas a dar-lhes eficácia: Justiça do Trabalho, sistemas de fiscalização e organizações sindicais. São necessárias medidas que combinem desenvolvimento econômico sustentável com políticas públicas que gerem emprego, assegurem renda e fluxos de renda, enfrentem as desigualdades sociais e a informalidade, integrem trabalhadores e trabalhadoras em direitos e garantias, independentemente da natureza dos serviços prestados, com legislação que assegure ampla representação das organizações sindicais. Ou seja, um estatuto com características de universalidade que não deixe ninguém à mercê da força bruta (Hobbes, 1979). Por outro lado, é importante a revogação de certas medidas, PEcs, regulações que, contrariando o falsamente prometido, contribuíram para aprofundar as históricas assimetrias de um mercado de trabalho constituído sob o signo da exclusão. Nesse diapasão, faz-se referência à recente pauta unificada das principais Centrais Sindicais brasileiras, aprovada no CONCLAT de 07 de abril/2022, com 63 propostas alinhadas aos princípios e pressupostos do presente texto. Entre elas, estratégias para o desenvolvimento econômico, geração de empregos, garantir direitos trabalhistas, previdenciários e sindicais, com vistas à redução das desigualdades sociais. 

À força desigualadora de um capitalismo que busca eliminar todos os obstáculos ao livre trânsito de seu desejo de acumulação de riqueza abstrata, o sistema público de proteção ao trabalho é um dos diques, com normas de ordem pública inafastáveis pela vontade das partes, informadas pelos princípios da proteção, da existência de relação de emprego quando há trabalho, da continuidade do vínculo de emprego, da isonomia, da vedação de retrocessos, da norma mais benéfica, da irredutibilidade salarial. Um estatuto que, contraposto aos particularismos, privatismos, aos interesses de certos grupos, pode se constituir em uma das vias de oposição à barbárie, rumo a uma sociedade fundada no bem comum. Mesmo porque substituir o poder do indivíduo pelo poder da comunidade representa passo decisivo para o processo civilizatório, cuja primeira exigência é a garantia de que uma lei não seja violada em favor de um indivíduo e, seu resultado final, um estatuto legal com a característica da universalidade que a todos agregue, impedindo que os indivíduos e a comunidade fiquem à mercê da força bruta, no dizer de Freud, invocando Hobbes. Este texto parte dessa perspectiva civilizatória de que fala Freud em O Mal Estar na Civilização e, nesse sentido, uma regulação pública, universal e instituições do trabalho estruturadas para lhe dar concretude e eficácia, ainda que não sejam autônomas, podem se constituir em uma das vias rumo à sociedade fundada no acesso amplo aos bens de vida e que não tenha a desigualdade como fundante, com foco na centralidade do trabalho e em um sistema que integre em direitos e garantias cidadãs. Assim, tendo como suposto a importância do Estado e seu papel na geração de empregos, garantia de trabalho, renda e fluxos de renda, com planejamento voltado ao desenvolvimento econômico sustentável, essa caminhada civilizatória poderá recuperar o que se perdeu no processo de ataque aos direitos e às instituições e avançar na direção de uma sociedade justa que assegure a todos o direito à vida. 


Referências bibliográficas:

BIAVASCHI, Magda B. O direito do trabalho no Brasil – 1930-1942: a construção do sujeito de direitos trabalhistas. São Paulo: LTr, 2007.

BIAVASCHI, Magda B; VAZQUEZ, Bárbara V. “Medidas para o trabalho no contexto da pandemia: um atentado contra a razão humana”, Cesit, Campinas, 2020, disponível em: https://www.cesit.net.br/medidas-para-o-trabalho-no-contexto-de-pandemia-um-atentado-contra-a-razao-humana/

BELLUZZO, Luiz Gonzaga. Império. Folha de S. Paulo, São Paulo, 17 dez. 2000. (Lições Contemporâneas).

__________. O Capital e Suas Metamorfoses. São Paulo: UNESP, 2013.

BELLUZZO, Luiz Gonzaga; GALÍPOLO, Gabriel. A Escassez Na Abundância Capitalista. São Paulo: Contracorrente, 2019. 

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização.Rio de Janeiro: Imago, 1997.

HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores).

KREIN, José Dari et al. (Org.). O Trabalho Pós-Reforma Trabalhista (2017). E-BOOK. Vol.01. CESIT, 2021.

OLIVEIRA, Francisco. “Neoliberalismo à brasileira”. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (org.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 24-28.

Magda Barros Biavaschi

Desembargadora aposentada do TRT 4 – Doutora e Pós-Doutoura em Economia social do trabalho pelo IE/ UNICAMP

[1] REICH, Roberto. How wealth inequality spiraled out of control, nov. 3, 2021, https://robertreich-org.translate.goog/?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt-R&_x_tr_pto=nui,sc. .  

[2] Nota técnica “Emprego, trabalho e renda para garantir o direito à vida”, GT Mundos do Trabalho: Reformas, Cesit/Unicamp, abril/2020. Disponível em: http://www3.eco.unicamp.br/index.php/covid19/2261-emprego-trabalho-e-renda-para-garantir-o-direito-a-vida.