
Não sabemos ao certo o quanto as narrativas do nascimento de Jesus foram centrais no princípio do cristianismo. O evangelho de Marcos, o mais antigo dos 4 evangelhos, nada fala do nascimento de Jesus. O último dos Evangelhos não narra o nascimento, mas fala da preexistência e do sentido do Verbo (Palavra), que “se fez carne e habitou entre nós” … como o “Filho único” de Deus (Jo 1,14)…
Já, os evangelhos de Mateus e Lucas se ocupam das narrativas da infância e são bem distintos entre si. Nesses dois evangelhos, o que se afirma sobre Jesus se refere a algo importante sobre o contexto e o caminho vivenciado pelas comunidades dos evangelistas. O que se narra em Mateus não está em Lucas e vice-versa. Nas tradições desta festa, que popularmente
chegaram às celebrações litúrgicas e ao imaginário do povo, sempre houve uma mistura dessas narrativas, como se fossem uma biografia. Destaquemos alguns aspectos de ambos.
Mateus, em seu evangelho da infância (Mt 1 – 2), faz uma releitura do Êxodo. O evangelho é introduzido pela genealogia de Jesus que cita cinco mulheres (Tamar, Raab, Rute, a mulher de Urias e Maria), que trazem em seus corpos a violência a que todo o povo foi submetido na história. Tiveram elas importante papel nos eventos de libertação do povo. Nesses dosi capítulos se afirma que Jesus é Emanuel (”Deus conosco”), cujo mistério é revelado em sonho a José, mas também o novo Moisés, perseguido por um tirano (Herodes, representante do poder romano na Judeia, corresponde ao faraó do Egito) que teme perder seu poder para a esperança de um povo que começa a se organizar e que não aceita a opressão, a escravidão (Ex 1, 8-14). Os magos, sábios do oriente, procuram e proclamam o nascimento daquele que será o rei do povo. Estes, sendo estrangeiros e sem conhecer as escrituras, se orientam pelos valores delas mais que as autoridades religiosas da época, aliadas ao rei tirano (Mt 2, 5); veneram uma criança marcada para morrer, na esperança de que será um rei de paz.
Do mesmo modo que o faraó do Êxodo mandou matar as crianças dos hebreus (Ex 2, 15-22), Herodes faz qualquer coisa para manter seu poder. Mas o enganador, tirano e genocida foi enganado pelos sábios, assim como as parteiras enganaram o faraó. Do mesmo modo que Moisés foi orientado em um sonho a voltar do Egito para Israel, a família de Jesus (imagem da comunidade de sofredores e perseguidos) é orientada por sonhos a seguir o caminho de um novo êxodo. Agora, a família foge para o Egito. O recurso ao sonho tem grande importância nesses relatos. Ele indica a intuição mais profunda daqueles que estão e permanecem no caminho da vida, independentemente de sua religião e cultura. O mistério de Deus e o destino da história não pode ser exclusividade de uma raça, de uma religião ou de uma posição social.
Desta forma, o evangelho de Mateus liga o nascimento de Jesus à memória do Êxodo. Jesus é o novo Moisés que liberta o povo das amarras da tirania, que ilumina o caminho daqueles e daquelas que, mesmo não pertencendo ao povo de Israel (migrantes, estrangeiros e toda classe de pessoas excluídas…), carregam o sonho de um mundo novo, onde todos e todas tenham lugar de dignidade.
O evangelho da infância em Lucas (Lc 1 – 2) traz outras narrativas e fala para a comunidade dos pobres. Dá grande destaque a personagens como João Batista e seus pais (Isabel e Zacarias), Maria e os pastores, profetas como Simeão e Ana… Assim como os pais de Jesus, todos estes e estas são representantes dos pobres e humilhados que acolheram a promessa e o projeto de Jesus, o Salvador. O cântico do Magníficat (Lc 1,46-56) deixa claro que o embate não é só religioso, mas também social e político; este se torna objeto da ação de Deus e do que ele fará com uma sociedade de classes, excludente, desigual e violenta. Orgulhosos, poderosos e ricos… não ficam bem nessa história, pois os demais sequer são enxergados por essa classe. O olhar de Deus aparece em favor dos pobres, dos humildes e humilhados, dos famintos e dos necessitados de socorro, servidores do projeto de Deus (“justos”, “Servos”, “tementes de Deus”, na linguagem do evangelho de Lc). É nesse contexto que é narrado o nascimento de Jesus como síntese de toda sua vida, missão e destino. Para Lucas, ele é o Salvador contra a força dos poderosos, sejam reis, ricos ou imperadores que só promovem a morte e o sofrimento do povo, pois seu nascimento se dá no lugar dos pobres (a manjedoura é símbolo do lugar que sobrou aos que não tem lugar na sociedade). O evangelista faz com que se identifiquem com e em Jesus todos aqueles e aquelas que hoje são despejados/as, desprezados/as por sua origem, estigmatizados/as e excluídos/as.
O nascimento de Jesus em Lucas dá testemunho de que a comunidade dos pobres que nasce só encontra a solidariedade entre os mesmos pobres. Por isso precisam de Deus, de socorro, de um advogado. Mas aqui, já não é por meio de sonhos, mas de mensageiros de Deus (“Anjos do Senhor”). Para o evangelista Lucas, os pobres é que são os portadores do Espírito de Deus, da força de transformação.
Ambos os evangelhos nos falam, portanto, do nascimento de um Jesus que faz com que o leitor se posicione. O “Deus conosco” tem lado nessa história! E é o lado dos pobres, dos migrantes excluídos e discriminados, dos/as escravizados/as e violentados/as de todo tempo e lugar (Mt 25, 31-46). Revela quem tem motivo real de alegrar-se com o nascimento de Jesus e quem, ao invés de alegria, o verá como ameaça ao seu poder.
E hoje? Quantos cristãos e cristãs mantém o sentido mais profundo do Natal? Para muitos, o Natal se resume a enfeites e ao consumo como centro da vida, sem consciência coletiva e sem se importar com os riscos da contaminação em plena pandemia… É o natal da participação em celebrações distantes da vida real de um povo que sofre, do muito falar de Jesus mas do pouco viver os seus valores e projeto, do vazio de sentido e de amor concreto…
Essa festa tem o potencial de dar verdadeira alegria e de gerar um mundo novo quando, na vida concreta do ano inteiro, pessoas –não importa sua religião – se solidarizam com os despossuídos de teto, terra e direitos, com os despejados pela especulação imobiliária, com os excluídos e excluídas da mesa dos bens da terra, com os projetos que são construídos para combater a desigualdade existente, com os e as que sofrem discriminação de todo tipo, com quem luta pela dignidade de todos e todas… Silenciar diante da absurda desigualdade e violência estrutural de nosso mundo vai na contra mão de quem deseja seguir Jesus. O verdadeiro Natal cristão não pode ser outra coisa que ver nos pobres e sofredores a presença de Jesus e se mover pela solidariedade e um mundo melhor para todos e todas. Tenham um feliz Natal!
Silvana Suaiden
Pastoral Operária Campinas – SP