O país do futuro

O país do futuro.
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Enquanto estas linhas são escritas, soa, em volume bem alto, uma das inesquecíveis canções escritas por certo poeta de Brasília, que há muito nos deixou. Nesta amostra do melhor que o rock brasileiro já produziu, um verso é repetido diversas vezes: “O Brasil é o país do futuro”. A afirmação, cunhada pelo escritor austríaco Stefan Zweig, teria sido uma expressão carregada de autênticas esperanças do autor, que via no país um povo marcado pela capacidade de conviver pacificamente com as diferenças étnicas e culturais – aquelas mesmas diferenças que o haviam obrigado a fugir de uma Europa contaminada pelo nazifascismo. Curiosamente, a frase não foi tão bem recebida por aqui, em sua época: ela fora interpretada como apoio, mesmo que velado, à então vigente ditadura do Estado Novo… Talvez seja ainda mais curioso o fato de que, na referida canção, as mesmas palavras também são proferidas em tom nada alegre: de acordo com relato do autor e vocalista da banda, seria problemático apostar sempre num futuro luminoso (mas indefinidamente distante), enquanto o presente permanece tenebroso.

O país do futuro.
Fonte da Imagem: My News

De fato, há um importante paralelo entre a observação feita pelo poeta / cantor (que, a bem da verdade, embora residisse no DF, era carioca) e outra conhecida frase, de autoria de John Maynard Keynes, geralmente identificado como o “pai da Macroeconomia”. Este intelectual britânico teria se espantado com a fleuma de vários de seus colegas economistas diante dos efeitos desastrosos da grande crise de 1929. Diziam aqueles acadêmicos que, muito embora a terrível crise trouxesse consigo, no curto prazo, falências, desemprego, penúria e desalento, ela haveria de purgar o mercado de seus elementos mais débeis, fortalecendo suas estruturas em bases mais competitivas e, sem qualquer necessidade de interferência do Estado, o resultado final seria um melhor arranjo sistêmico: o mercado, agora povoado apenas pelos agentes econômicos mais capazes, veria melhorando seu desempenho, gerando mais empregos e crescimento… em algum momento do futuro, no longo prazo. Com o uso de sua habitual ironia, Keynes teria meramente chamado atenção para um aspecto corriqueiro – porém incontornável – da realidade: “No longo prazo, todos nós estaremos mortos”.

Com efeito, promessas abstratas de um porvir materialmente abundante não costumam resolver as carências concretas do presente; no entanto, esse fato parece não incomodar certos economistas da atualidade que, a despeito da assertiva observação do intelectual britânico, seguem se portando como mercadores de ilusões. Em seu discurso alegadamente objetivo, técnico e desligado de interesses particulares, um futuro brilhante nos aguarda logo ali na esquina, logo depois da próxima reforma – trabalhista, previdenciária, administrativa, ou outra qualquer de cunho liberalizante. A redução dos custos do trabalho faria com que os empresários contratassem mais empregados; o corte de benefícios previdenciários traria mais equilíbrio às contas públicas, para o que também contribuiria o corte nos vencimentos do funcionalismo – um Estado mais “enxuto” cobraria menos impostos, estimulando a atividade empresarial; finalmente, a ampla desregulamentação deixaria “livres” as forças eficientes da concorrência que, sem os obstáculos da politicagem e da corrupção (pragas oriundas do Estado), conduziriam o país ao paraíso do mercado, com altos níveis de crescimento econômico e geração de renda. Diante de tal discurso, é bem provável que o velho – e, é bom lembrar, conservador – Keynes sacasse mais uma de suas frases mordazes: “Os insensatos, que ocupam posições de autoridade, que ouvem vozes no ar, destilam seus arrebatamentos inspirados em algum escriba acadêmico de certos anos atrás”. De fato, seu projeto de salvar o capitalismo implicava reconhecer a inexistência de mecanismos internos ao mercado que pudessem garantir níveis mínimos de crescimento, emprego e igualdade; daí o incontornável papel do Estado no equacionamento dessas necessidades sociais.

A gestão da economia brasileira tem ficado, desde 2016, sob a batuta dos tais discípulos do “escriba acadêmico” liberalóide; a velha e carcomida receita da redução do tamanho do Estado como remédio para todos os males tem, porém, mostrado a que veio: com a redução dos estoques reguladores (mantidos por compras públicas) de alimentos, seus preços dispararam; as taxas de inflação, considerando o recorte por faixa de rendimento domiciliar, se mostram mais agudas justamente para as famílias mais pobres, que são obrigadas a usar grande parte de sua renda para comprar comida; dados do IPEA mostram que a taxa de inflação acumulada em 12 meses (até outubro último) foi de 11,39% para famílias de renda muito baixa – e de 9,32% para as de renda alta. E isso ocorre exatamente quando o Estado se mostra impedido de, com seus gastos, estimular a geração de emprego e renda (dada a vigência do malfadado “teto de gastos”); não por acaso, o IBGE indica que segue alto o nível de desemprego (perto dos 13%, afetando cerca de 13,5 milhões de pessoas – ou mais de 21 milhões, se somadas aí as pessoas subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas), ao passo que o rendimento médio real (ou seja, descontada a inflação) de todos os trabalhos atingiu, no terceiro trimestre deste ano, seu patamar mais baixo desde o último trimestre de 2012 (!). Para este quadro também contribui negativamente o fato de que, na ausência de controle (estatal) do fluxo de capitais financeiros e, portanto, da taxa de câmbio, o real segue sendo uma das moedas mais desvalorizadas no planeta, o que está na base do problema da inflação e do desabastecimento do mercado interno. Convém lembrar que este é o cenário que se observa apesar de certa recuperação econômica (crescimento de 5,7% do PIB, no acumulado do ano) e de melhora no saldo orçamentário do governo. Aparentemente, o crescimento redentor, puxado pelo livre jogo das forças de mercado, foi novamente adiado para uma próxima oportunidade – ao menos para os(as) trabalhadores(as) e pobres em geral.

A fome está de volta, massivamente; e quem tem fome não pode esperar. Nossos valores cristãos de solidariedade nos obrigam a não usar de indiferença frente ao sofrimento dos deserdados do mercado: trata-se de ver, julgar, agir; afinal, já é bastante bem conhecida a diferença entre espera e Esperança (virtude teologal, com “E” maiúsculo). Que nossa Esperança esteja bem alicerçada na atitude de um povo que se sabe “escolhido” porque “escolheu escolher” seu próprio futuro. Tomando emprestados mais alguns versos daquela canção, “quando querem transformar Esperança em maldição”, é bom que tenhamos consciência da urgência dos nossos tempos: “E agora é aqui”.

Marcelo S. de Carvalho

Economista. Militante da Pastoral Operária na Arquidiocese de Campinas – SP