Otimismo da Vontade

Um célebre aforismo atribuído a um grande pensador italiano contrapunha “o pessimismo da razão” ao “otimismo da vontade” – vontade de mudança, portanto. Tempos duros costumam, de fato, demandar grande força de vontade para sua superação; em escala social, a vontade portadora de efetivo poder de mudança demanda a organização do povo castigado que é pelas agruras. Se tal foi o caso do referido italiano de outrora, em sua luta contra o fascismo, tal parece também ser o caso do Brasil de hoje, em face de tendências políticas tristemente semelhantes.

Motivos para um pessimismo de base racional abundam. O desemprego assola 14,4% das pessoas dentro do mercado de trabalho, de acordo com dados da PNAC-Contínua do IBGE, de agosto último; ainda de acordo com a mesma pesquisa, a taxa composta de subutilização da mão de obra (isto é, a medida mais ampla que inclui, além do desemprego, as situações de insuficiência de horas trabalhadas e outras circunstâncias que limitam o trabalho remunerado) atingiu o número também recorde de 30,6%. Os mesmos dados, curiosamente, indicam também uma pequena melhora nos rendimentos reais médios do trabalho; entretanto, é importante lembrar que, neste caso, são computados apenas os rendimentos daqueles que permaneceram empregados no período – logo, se temos em mente que as demissões costumam castigar primeiro as posições ocupacionais mais frágeis, é fácil perceber a ilusão estatística: a média sobe porque os trabalhos de remuneração mais baixa seguem sendo cortados! Prova disso é o comportamento da massa salarial (ou seja, o volume total de pagamentos feitos a todos os trabalhadores do país): os valores registrados para 2020 são os mais baixos desde meados de 2012…

É claro que os efeitos da pandemia são inegáveis e castigam todos os países do mundo. Porém, é importante lembrar que o PIB brasileiro já mostrava trajetória de queda mesmo no primeiro trimestre do ano: -0,3% em relação ao mesmo trimestre de 2019. Logo, a condução econômica do país já mostrava seus péssimos resultados mesmo antes dos efeitos deletérios da pandemia; e é importante lembrar que houve esse decrescimento mesmo na comparação com uma base já muito baixa (já que 2019 foi um ano de baixo crescimento da economia nacional). A aposta do governo federal (e, em larga medida, também do governo paulista) na ideia fundamentalista da redução do tamanho do Estado como condição para gerar um vigoroso crescimento econômico mostrou-se falaciosa: mesmo depois das reformas trabalhista e da previdência, o empresariado (local e estrangeiro) não investiu na produção ou abriu novas (e significativas) vagas para trabalhadores; de fato, a formação bruta de capital fixo (em termos simplificados, o “investimento na produção”) tem mostrado importantes recuos, especialmente no setor da indústria de transformação. Assim sendo, o violento corte de direitos trabalhistas duramente conquistados em décadas de luta do operariado brasileiro em nada serviu à imensa maioria da população. A exceção fica por conta do setor financeiro (os bancos seguem lucrando) e das grandes fortunas que, apesar do cenário tenebroso da pandemia, cresceram. Aumenta, portanto, a desigualdade. E para esse resultado também contribuem a redução do papel do Estado como provedor de serviços (dados os cortes orçamentários inspirados pela obsessão com o “teto de gastos”, introduzido por emenda constitucional, ainda que temporariamente relativizado) e o aumento dos preços de itens da cesta básica (por conta de restrições na esfera da produção e pela inexplicável política de redução dos estoques reguladores do Estado).

Não obstante esta pletora de malfeitos e desgraças, o governo federal ainda parece contar com certa base de apoio popular; porém, cabe notar que o pagamento do benefício emergencial que, até o momento, tem evitado um desastre social (e econômico) de maiores proporções tem término previsto para breve – por oposição à pandemia que lhe deu origem, cuja segunda onda assola fortemente os países da Europa, nesse momento. Sem a recuperação econômica de muitos de nossos parceiros de comércio externo, sem as transferências de renda que poderiam sustentar o consumo das famílias (que, mesmo assim, tem mostrado retração), sem o investimento produtivo e, para piorar, com a perspectiva de cortes nos vencimentos do funcionalismo público (a depender de como será encaminhada a atual proposta de reforma administrativa do governo federal), não há como imaginar uma retomada do crescimento econômico suficiente para melhorar as condições objetivas de vida de trabalhadores e trabalhadoras. E, nesse caso, resta saber como vai se portar o (limitado) apoio popular ao governo federal – e também o próprio governo. Por mais ideológica que seja a condução econômica do governo atual, é difícil imaginar que ela seja indefinidamente imune a seus próprios fiascos e ao ambiente político, tanto interno quanto externo. E, é claro, vale a pena comentar algo a esse respeito.

O sucesso obtido pela ampla mobilização do povo chileno para repudiar a constituição deixada pela ditadura (e que serve de grande inspiração a certo ministro de Brasília), a eleição do candidato do MAS na Bolívia e, mais recentemente, a derrota de Trump nas eleições para a presidência dos EUA podem ser sinais de uma mudança de ares na política do continente americano. No âmbito interno, a precoce desidratação de certas candidaturas que se alinham em alguma medida ao fascismo, bem como a gradual retomada de espaço das lideranças progressistas podem igualmente ser sinal de inflexão. As lutas em nível local podem (e devem) se somar àquelas de mais largo escopo; a formação de uma base ampla de vereadores e prefeitos corresponde a uma excelente oportunidade de traduzir o otimismo em razões concretas para a superação.

Marcelo S. de Carvalho

Pastoral Operária de Campinas – SP