Dados recentes da economia brasileira parecem dar motivos para algum otimismo: o PIB teria voltado a crescer, finalmente. Há mesmo quem fale que a produção e a renda do país estariam “decolando”. De fato, 2021 mostrou crescimento de 4,6%, ao passo que os dois primeiros trimestres do corrente ano exibiriam taxas de crescimento de 1,7% e 3,2%, com respeito aos mesmos períodos do ano anterior. Por outro lado, a inflação do último mês de julho, medida pelo IPCA-IBGE, teria mostrado recuo de 0,68% (deflação!). Adicionalmente, a taxa de desemprego recuou de uma média de 13% (em 2021) para pouco mais de 9%, em junho último. Assim sendo, o Brasil teria aumentado seu ritmo de produção de riquezas de modo consistente, superando a crise agravada pela pandemia em 2020. O ministro autor da hipótese do “voo” da economia nacional teria, portanto, razão – como também seria correto seu diagnóstico segundo o qual as iniciativas de liberalização, desregulamentação e privatização estariam trazendo seus benefícios ao povo brasileiro.
Ocorre, porém, que esse mesmo povo brasileiro já conhece, de longa data, a cantilena dos tais discursos pretensamente técnicos: o quadro recheado de belos números contrasta com as geladeiras recheadas de espaços vazios. Um olhar mais atento nos mostra que crescimento expressivo de 2021 tem como base de comparação o epicentro da pandemia, 2020 – ano no qual o PIB diminuiu 3,9%; logo, ao final do ano passado, o PIB apenas retornou a um patamar quase idêntico àquele de 2019 – e é bom lembrar que, naquele ano (anterior à pandemia, mas já no atual governo), o crescimento havia sido pífio (apenas 1,2%).
Há quem diga que o Brasil teve desempenho macroeconômico sofrível fundamentalmente por conta da pandemia e seus efeitos, tanto imediatos quanto posteriores; fosse esse o caso, o nosso país não mostraria crescimento inferior à média da América Latina (a qual, por óbvio, esteve submetida à mesma pandemia) – tanto em 2021 quanto nas projeções mais recentes do insuspeito FMI para 2022-23.
O comportamento dos preços, por sua vez, tem castigado mais pesadamente os segmentos de mais baixa renda, especialmente pela carestia dos alimentos (não mais protegidos pelos estoques reguladores do Estado); de acordo com o IPEA, os domicílios com renda muito baixa foram os menos beneficiados pela recente queda nos preços (-0,34%, em julho), ao passo que aquela redução fora mais generosa com as rendas médias e altas (com quedas de cerca de -0,8%, no mesmo mês); no caso dessas faixas de renda, têm mais peso os combustíveis – cuja redução de preços, aliás, tende a não se manter – se for mantida a atual política de preços da Petrobras. Em que pese a deflação de julho, tem-se ainda um aumento de mais de 10% na média dos preços dos últimos 12 meses; do ponto de vista da população trabalhadora, isso significou uma queda real (isto é, descontada a inflação) da média mensal das remunerações; consideradas as médias anuais, 2021 mostrou o valor mais baixo de toda a série disponível de dados (PNAD Contínua, IBGE). E, em linha com o que se observou em relação ao PIB, a inflação brasileira também se mostrou pior que a da média da América Latina, consistentemente entre 2018 e 2022, de acordo com a CEPAL.
Note-se, ainda, que a pretensa recuperação da produção e do emprego no primeiro semestre de 2022 mostrou fôlego curto, ao menos no que importa à classe trabalhadora: a taxa composta de subutilização da mão de obra (para simplificar, uma combinação de desempregados, desalentados e subocupados por insuficiência de horas trabalhadas) flutuou entre 23% e 21%; para fins de comparação, esta taxa era de aproximadamente 15% ao longo de 2014, ano de melhor desempenho no histórico recente do mercado de trabalho brasileiro – justamente em época anterior aos macabros experimentos do liberalismo alucinado, pós-2016. Dentre tais experimentos, o mais macabro de todos foi certamente a reforma (deforma?) trabalhista, lastreada no argumento da melhora da oferta de postos de trabalho formais a ser obtida com a redução dos custos de contratação e demissão, bem como a partir da maior fluidez das formas legais de uso do trabalho no país. Para desgosto da torcida – na grande imprensa, em setores empresariais e até mesmo no Judiciário –, a taxa de informalidade no mercado de trabalho brasileiro simplesmente não sofreu qualquer alteração minimamente significativa entre 2017 (ano da malfadada reforma) e 2022, permanecendo no patamar de cerca de 40%. Ao contrário, na comparação com 2015-16, a taxa de informalidade aumentou discretamente – na contramão das previsões dos grupos de caça à CLT.
Não chega a ser surpreendente, portanto, que o país tenha voltado – novamente, com destaque internacional – ao mapa da fome; as políticas públicas que poderiam ajudar a mitigar tal quadro de penúria foram desarticuladas (como no caso do Bolsa Família) ou amplamente subfinanciadas, como no caso da infraestrutura, da educação e da saúde pública. A famigerada emenda constitucional do “teto de gastos” só não se mostrou limitante aos gastos federais com juros da dívida pública; ao contrário, voltamos a praticar taxas de juros que, em termos planetários, nos situam no pódio da infâmia. Os limites fiscais tampouco de fizeram presentes quando do uso de verbas para o chamado “orçamento secreto” e para as benesses de reconhecido cunho eleitoreiro, ora em uso. Com efeito, vivemos tempos muito curiosos, nos quais impera um liberalismo econômico tão obstinado quanto… seletivo, digamos.
Como diria o magnífico Celso Furtado em outros tempos, mas com total aderência ao presente: “Em nenhum momento de nossa história foi tão grande a distância entre o que somos e que esperávamos ser”. Apesar da dureza da constatação, o célebre autor olhava para o futuro com confiança: “Em um futuro que, imagino, não será muito remoto, parecerá simples devaneio de intelectual ocioso a referência ao que está ocorrendo na América Latina, neste final de era marcado pelo fundamentalismo mercantil”. Cuidemos para que esse futuro imaginado por Furtado esteja, de fato, próximo. Quem sabe já se possa vislumbrá-lo, ainda que apenas em parte, em outubro…
Marcelo S. de Carvalho
Economista. Militante da Pastoral Operária na Arquidiocese de Campinas – SP