Trago para nossa reflexão dois fragmentos de duas narrativas relacionadas à vida de mulheres. Duas mulheres que tiveram suas vidas marcadas pelo trabalho de servidão e do corpo explorado por chefes patriarcais. Coisas comuns e “normais” dentro de uma sociedade baseada na exploração do trabalho e do corpo de mulheres… Sociedades patriarcais.
“Desgraça é de pau resistente; muda enfiada no chão não demanda cuidado, cresce sozinha, frondosa, em todo caminho se encontra. Em terreiro de pobre, compadre, desgraça dá de abastança, não se vê outra planta. Se o cujo não tem a pele curtida e o lombo calejado, calos por fora e por dentro, não adianta se pegar com os encantados, não há ebó que dê jeito. Lhe digo mais uma coisa, meu chapa, e não é para se gabar nem para louvar a força dos pés-rapados, mas por ser a pura verdade: só mesmo o povo pobre possui raça e peito para arcar com tanta desgraça e SEGUIR VIVENDO.” (Tereza Batista cansada de guerra; capítulo introdutório, Jorge Amado)
Trago para nossa reflexão dois fragmentos de duas narrativas relacionadas à vida de mulheres. Duas mulheres que tiveram suas vidas marcadas pelo trabalho de servidão e do corpo explorado por chefes patriarcais. Coisas comuns e “
“Ela saiu, andando errante pelo deserto de Berseba. Tendo-se acabado a água do odre, colocou ela o menino debaixo de um dos arbustos e, afastando-se, foi sentar-se defronte, à distância de um tiro de arco; porque dizia: Assim, não verei morrer o menino; e, sentando-se em frente dele, levantou a voz e chorou. Deus, porém, ouviu a voz do menino; e o Anjo de Deus chamou do céu a Agar e lhe disse: Que tens, Agar? Não temas, porque Deus ouviu a voz do menino, daí onde está. ERGUE-TE, levanta o rapaz, segura-o pela mão, porque farei dele um grande povo. Abrindo-lhe Deus os olhos, viu ela um poço de água…” (Gênesis 21, 14b – 19a)
Duas narrativas de dois locais tão diferentes. Duas mulheres marcadas pela vida cheia de desgraça e sofrimentos. E de graça também. Duas narrativas de mulheres surradas pela vida de gente pobre e que anda errante à procura de sinais para SEGUIR VIVENDO. Duas fontes e duas tradições tão diversas que contam um pedaço da vida do povo pobre. Povo este cujo rastilho da morte os persegue a cada esquina ou curva no caminho. Caminho de fome, de violências sexuais contra estas duas mulheres, compradas por um patriarca e usadas a bel prazer, sozinhas e errantes. Duas mulheres da margem…
Destas narrativas, o nosso país está cheio. Histórias de vida de um povo colocado à margem das possibilidades de direitos e de dignidade. É o “normal” no Brasil ainda colonizado. Um país repleto de diversidades culturais por sua origem pré-colonial e povoado por povos escravizados da África, mais os povos empobrecidos e esfomeados vindos da Europa. Uma nação que inicia sua colonização violentando centenas de mulheres indígenas, traficando jovens de nações africanas para senhores feudais e capatazes. As marcas desta triste história ainda nos perseguem hoje. Os feminicídios e maus tratos com empregadas domésticas é a concretude de um patriarcado colonialista que está presente no cotidiano em nossa sociedade.
Mas a resistência há sempre sociedades exploradoras. Como nestas duas personagens, Agar e Tereza, a teimosia e resiliência, força e persistência são testemunhos de luta e esperança. A Agar a divindade da VIDA e da MISERICÓRDIA se revela no deserto. É a primeira mulher das narrativas israelitas a receber a revelação divina. A manifestação de Deus acontece através do diálogo, da pergunta do porquê do seu choro, do ato de ouvir o clamor de fome e sede da criança, e por fim, os olhos de Agar que se abrem e veem o poço de água. Água da vida, água da esperança para SEGUIR VIVENDO.
E por isso, inspiradas/os e abraçadas/os na MISERICÓRDIA da divindade de Agar (Deus Javé) somos convidadas/os à resistência solidaria com milhares de Tereza Batista e Agar, mulheres anônimas deste país, violadas e violentadas, com os milhares de LGBT perseguidos pela discriminação, com os milhões que estão na miséria, com todas e todos injustiçados e alienados de direitos básicos e dignidade. Um Brasil da diversidade étnica/racial por excelência, com todas as expressões de espiritualidades e credos, todas práticas de Fé de um povo muito religioso esperam de nós uma ação profética e amorosa cotidiana.
Haidi Jarschel
Pastora Voluntária IECLB, Teóloga Luterana