Após um tempo de relativo silêncio, o mundo do trabalho parece voltar a ser presente na reflexão e na vida da Igreja, nas tomadas de posição, nos pronunciamentos e na pastoral sob o impulso do pensamento e posicionamentos do Papa Francisco. São frequentes as referências ao assunto, quer em documentos, discursos e entrevistas, quer ainda em encontros dos mais diversos com os protagonistas diretamente vinculados ao mundo do trabalho. Papa Francisco é atento ao que acontece no mundo e cultivou uma leitura da realidade que o leva a vê-la sempre a partir da perspectiva dos mais pobres, dos excluídos, dos que para o paradigma tecnocrático não existem. Na sua esteira, a Igreja dá sinais (ainda que tímidos) de que está recobrando a importância deste tema na sua missão evangelizadora junto ao Povo de Deus, que em sua grande maioria é trabalhador, trabalhadora.
O alerta de Francisco atinente especialmente à questão da democracia vale igualmente, ou mais ainda, para a realidade do mundo do trabalho: “Mas a história dá sinais de regressão” (FT 11). Os sinais de retrocesso – desregulamentação e precarização das condições trabalho – que se vê no mundo todo, são preocupantes. Mas não estamos diante de uma fatalidade, estamos diante de opções sociais que trocaram de sinal: passaram a excluir, precarizar e empobrecer a maioria das populações, com graves consequências para o viver juntos. Cria-se um ambiente extremamente tóxico que se retroalimenta pessoal, familiar e socialmente.
Ao ler artigos que refletem sobre o pensamento de Papa Francisco a respeito do trabalho fui levada a destacar três aspectos que chamaram minha atenção e proporcionaram reler alguns textos bíblicos que considero inspirador, que sugiro a vocês e quem sabe possam aprofundar: dignidade do trabalho; relação trabalho e ecologia; renda básica universal.
Dignidade do trabalho
Início afirmando que todo trabalho em função da vida é digno. Pelo trabalho continuamos a obra criadora de Deus. O ser humano é cocriador e colaborador de Deus na criação. “A Doutrina Social da Igreja sempre considerou o trabalho humano como uma participação na criação que continua a cada dia, também graças às mãos, à mente e ao coração dos trabalhadores. Na terra há poucas alegrias maiores do que aquela que experimentamos trabalhando, da mesma forma que há poucas dores maiores do que as dores do trabalho, quando explora, esmaga, humilha e mata” (FRANCISCO, 2017b). Neste sentido devemos superar o paradigma tecnocrático: trabalho X emprego.
O texto bíblico que sugiro refletir é parte da história do patriarca Jacó que encontramos nos capítulos de Gn 29-31. Não entro em mérito a toda narração referente ao patriarca Jacó, aqui levo em consideração somente o que é narrado nestes capítulos.
Jacó após roubar a primogenitura de seu irmão Esaú, precisou sair de sua terra, abandonar seu clã e fugir. Orientado por Rebeca sua mãe, volta a Ur dos Caldeus à procura do tio Labão. Ao empreender a viagem ele se torna migrante, itinerante. Na terra do tio Labão ele se encontra numa situação de fragilidade, pois é desprovido de tudo, tem somente sua profissão de pastor, fácil presa, será explorado pelo tio por bem 14 anos, e, mais além. Neste sentido podemos espelhar em Jacó o povo migrante do nosso tempo: pela fome, pelo desemprego, pelas guerras, pelo avanço do latifúndio … ao interno do Brasil e vindo de outros países … Visualizando sua situação poderíamos sintetizar: sem-terra, sem teto, sem trabalho … O tio Labão se aproveita desta situação, dos sentimentos de Jacó, da cultura de seu povo …
Quando Jacó conseguirá se libertar da exploração no seu trabalho, na sua profissão de pastor? Vou sugerir alguns aspectos, vocês depois podem perceber outras luzes: aprimorando sua profissão de pastor; isso não será suficiente, ele precisa perceber quem também é explorado ao seu redor e gerar articulação. Precisa fazer um caminho: perceber que suas esposas, as mulheres são trabalhadoras, a dignidade e o valor de seu trabalho (gerando filhos e filhas, buscando água, cozinhando, cuidando dos filhos, dos doentes e dos anciãos, tirando o leite, fazendo os queijos, curtindo o couro…); no aprimoramento de sua profissão precisa do trabalho dos subalternos, reconhecer seu valor e dignidade. Jacó vai formar seu próprio clã quando reconhecer o valor do trabalho de outras categorias de pessoas e se articular com elas…
Reflitam: o que fala para nós hoje?
Relação trabalho e ecologia
Me refiro aqui ao paradigma tecnocrático em que vivemos e sua relação com o trabalho e a ecologia integral.
Sugiro aqui reler a página inicial do nosso texto sagrado Gn 1,1-2,4. Texto que nasce no tempo do exílio para alimentar a esperança de quem havia perdido tudo. Os, as autoras elaboraram sua reflexão numa linda e solene liturgia.
Sobre o caos (trevas – águas – abismo = caos) para a Ruah, seu voo faz acontecer a harmonia entre as trevas e a luz, as águas e a terra, a terra e o firmamento; a harmonia possibilita a vida: plantas, flores, frutos, aves e peixes, e no sexto dia os animais entre eles o ser humano imagem e semelhança do Divino, para continuar a ação criadora multiplicando a vida através do cultivar e cuidar. E, acontece o sábado. O sábado é o coroamento da criação.
O trabalho precisa ser compreendido não como domínio, mas essencialmente como cuidado. “O trabalho que não cuida, que destrói a Criação, que põe em perigo a sobrevivência das gerações futuras e não respeita a dignidade dos trabalhadores não pode ser considerado digno. Ao contrário, o trabalho que se preocupa, contribui para a restauração da plena dignidade humana, ajudará a garantir um futuro sustentável para as gerações futuras” (FRANCISCO, 2021).
A ecologia integral requer uma recuperação do significado ecológico do descanso sabático. Francisco dá sua contribuição quando diz que é preciso “incluir uma dimensão receptiva e gratuita, o que é diferente da simples inatividade” (LS 237), para preservar a ação humana tanto do puro ativismo vazio, como da ganância desenfreada do benefício próprio. E recorda que a lei do repouso semanal impunha abster-se do trabalho no sétimo dia, ‘para que descansem o teu boi e o teu jumento e tomem fôlego o filho da tua serva e o estrangeiro residente’ (Ex 23, 12). O repouso é uma ampliação do olhar, que permite voltar a reconhecer os direitos dos outros. Assim, o dia de descanso, cujo centro é a Eucaristia, difunde sua luz sobre a semana inteira e encoraja-nos a assumir o cuidado da natureza e dos pobres (LS 237).
De fato, as “teologias centralistas” sempre colocaram o acento nos seis dias de trabalho e menos no sétimo – dia de descanso. Isso porque fazem uma correlação entre o poder de Deus sobre o mundo e o domínio dos homens sobre a terra. “Assim como Deus, o criador, é o senhor e proprietário do mundo, assim, e de uma forma correspondente, o ser humano tinha que se esforçar para ser senhor e proprietário da terra” (MOLTMANN, 1993, p. 18). Em um contexto de crise ecológica de toda a civilização técnico-científica e de esgotamento dos recursos naturais através da intervenção humana, esta visão predatória não se sustenta.
Somos convidados e convidadas a transferir a ênfase para o sétimo dia, dia da culminância da criação. O trabalho não tem um sentido em si mesmo, mas projeta-se para dentro do “sábado”, termo que está ligado ao verbo hebraico “shabat”, que significa repousar, cessar de trabalhar. E ele tem uma longa tradição que vai dos israelitas e chega até Jesus, que não abole o sábado em prol de boas obras e bons dias de trabalho. Com Jesus, o anúncio da proximidade do Reino, toda a vida se transforma numa festa de sábado. A ressurreição de Jesus, para os cristãos, o “domingo”, “dia do Senhor”, não somente antecipa o descanso sabático do final dos tempos como também o início da “nova criação”, ou com outro dizer “bem viver”.
Renda básica universal
Há uma evolução no pensamento do Papa Francisco a este respeito, talvez devido a situação de empobrecimento e precariedade geradas pela pandemia do covid-19. Ele afirma que sem emprego, sem trabalho não haverá dignidade (sem emprego – sem trabalho – sem dignidade), trabalho e dignidade estão intimamente relacionados. Por isso apresenta três aspectos pelos quais devemos nos empenhar para alcançar a renda básica universal.
A renda básica vai permitir:
- A possibilidade de rejeitar o trabalho precário. É a fome que obriga a aceitar os empregos precários;
- Alcançar segurança. O desemprego, o trabalho informal gera insegurança, e mais uma vez percebe-se que é a fome, a insegurança a respeito da vida que permite e exploração no trabalho;
- Poder exercitar atividades e trabalhos sem fins lucrativos. Aceitar trabalhos de meio expediente para contribuir na solidariedade social.
Talvez a releitura de duas parábolas narradas por Jesus nos ofereça luzes para perseguir esta reflexão.
Lucas 19,11-28
As comunidades lucanas localizadas nas cidades greco-romanas nos apresentam Jesus narrando esta parábola logo em seguida ao acontecimento com Zaqueu e caminhando para Jerusalém.
Segundo precisamos reencontrar o verdadeiro sentido desta parábola, pois ela foi muito desvirtuada, transformou-se o dinheiro em dom, carisma e assim o sentido foi totalmente diferente. Por isso vamos ler esta parábola e prestar atenção ao vocabulário empregado.
Relembro mais uma vez que antes de encontrar a mensagem para nós, precisamos entender e respeitar o texto: o que ele diz em si. Mil denários… negociai… não querem ele como rei, mas se torna rei… havia negociado… teu dinheiro produziu dez vezes mais… administrar as dez cidades… teu dinheiro produziu cinco vezes mais… administrar as cinco cidades… aqui tem teu dinheiro… tinha medo porque és rigoroso: retiras o que não depositas, colhes o que não semeaste… por tua boca te condeno, empregado negligente. Sabias que sou rigoroso, que retiro o que não depositei e colho o que não semeei. Porque não puseste o meu dinheiro no banco para que, ao voltar recuperasse com juros… ordenou tirai-lhe o dinheiro a dai-o àquele que conseguiu dez vezes mais… quem não me queria rei degolai-os na minha presença…
Que linguagem é empregada? Que tipo de sociedade revela? Cada empregado faz uma opção ao rei como definir cada opção? Quais as consequências de cada opção? Por que ele conta esta parábola subindo para Jerusalém? O que a parábola fala aos nossos dias, à nossa vida?
Percebemos que toda a linguagem é econômica, em nenhum momento se fala de dons, de carismas. Nas explicações que fizemos sempre depreciamos o empregado que não quis colaborar com o sistema explorador do rei, guardando o denário no lenço. Dificilmente refletimos que o seu é um protesto, é resistência a um sistema explorador injusto. Ele não quer fazer parte de um sistema onde tudo deve lucrar. Onde o capital deve sempre e necessariamente crescer. Como estavam protestando quem não queria este homem nobre como rei, pois seu reinado era justamente o reinado de Mamona. A mensagem é clara: Aquele que não aderir … quem não quer entrar no sistema qualquer atitude tomada é eliminado, excluído, jogado fora.
Em Jerusalém Jesus vai enfrentar o coração desta estrutura social e religiosa. Lá ele será eliminado porque seu reinado é justamente o contrário: dar a Mamona o que é de Mamona, dar a Deus o que é de Deus. Sua proposta é uma proposta de redistribuição, restituição, partilha, solidariedade, colocar em círculo os bens.
Mateus 20,1-16
A parábola nos ajuda a ter uma visão da situação da Galileia: há desemprego porque o latifúndio expropriou os pequenos agricultores, agora reduzidos a boias frias. O latifundiário sai procurando trabalhadores para colheita. Ele até pergunta: por que não foram trabalhar? A resposta é cabal: ninguém nos contratou … A surpresa é na hora do pagamento, que não é o combinado, um denário, mas a vida, a sobrevivência. É quebrada a relação: emprego X salário, mas, trabalho X vida.
Aqui talvez podemos vislumbrar luzes para a renda básica universal: a dignidade do trabalho, do trabalhador, trabalhadora, a dignidade de qualquer atividade/trabalho para a vida?
São intuições de quem já experimentou ser operária assalariada e agora continua sendo trabalhadora de outra maneira.
Tea Frigerio
Missionária de Maria – Xaveriana